fight the future? (ou: ódio ao desconhecido)

a bola da vez esta semana é o ganhador do Oscar de Melhor Filme de 2023, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo. A premiação gerou um tsunami de críticas negativas na imprensa brasileira. Eu disse críticas? Esqueçam: uma definição mais adequada seria chiliques, com reações que foram do pretensamente intelectual ao simplesmente infantil, piti mesmo. Não vou me estender aqui porque este é um blog de conteúdo acadêmico, mas os textos que li me fizeram pensar a respeito das causas.

O mais arguto desses textos foi o da jornalista Jéssica Nakamura, no UOL. Jéssica analisa o que estaria por trás dessas supostas críticas, e chega à conclusão de que é o racismo, consciente ou não. Eu concordo, e já discuti o suficiente esse assunto nas redes, portanto não vou fazer isso aqui.

Acho mais importante levantar uma questão que diz respeito a dois pontos levantados pelos críticos: segundo eles, o filme seria simplesmente chato e incompreensível. São dois adjetivos que apontam para dois critérios, um subjetivo e outro objetivo. O da chatice é subjetivo, e é isso: cada um tem seu gosto, o filme não funciona para todos, nem precisa. Gosto não se discute.

Mas incompreensível? Será mesmo?

Não vou analisar o roteiro, mas hoje cedo, numa discussão no Facebook, me ocorreu o seguinte pensamento: sim, o filme pode ser incompreensível desde que o vejamos com os olhos da protagonista, a chinesa de 60 anos (vivida por Michelle Yeoh, que ganhou merecidamente o Oscar de Melhor Atriz) que vive uma vida chinfrim nos Estados Unidos e de repente é apresentada a infinitas versões de si mesma em universos paralelos. Se levarmos em conta que uma pessoa da categoria demográfica dela teria grandes chances de não fazer ideia do que seja o multiverso, sim, o filme poderia ser incompreensível.

O filme, claro, está muito longe disso, porque do meio para o fim da película o roteiro chega a ser chato (ahá!) ao explicar didaticamente o que seria esse tal de multiverso. O final (sem spoilers) é açucarado, quase agridoce, mas bem como a família hollywoodiana gosta. Portanto, é bobagem falar que o filme não faz sentido, a menos que você o abandone nos primeiros 15 minutos, como aparentemente muita gente fez e virou moda afirmar nas redes.

O que pensei foi que, em termos de intenção, os diretores (Daniel Kwan e Daniel Scheinert, que também escreveram o roteiro) fizeram a mesma coisa que Anthony Burgess em seu livro Laranja Mecânica, que tive o prazer de traduzir para a Editora Aleph há quase vinte anos (todas as edições atualmente à venda têm essa mesma tradução, apesar das capas diferentes). Burgess criou o nadsat, pseudodialeto anglo-russo, para que a narrativa de seu protagonista Alex DeLarge fosse quase incompreensível para os leitores num primeiro momento, e só depois de perseverar na leitura eles (como pessoas mais velhas tentando entender um jovem) pudessem finalmente achar que algo foi entendido na narrativa – embora sempre sem ter certeza disso.

É um procedimento muito simples chamado estranhamento cognitivo, primeiramente formulado por Roman Jakobson. O formalista russo criou o conceito de ostranienie para dar conta do choque provocado por um acontecimento fantástico no meio de uma situação aparentemente corriqueira. As narrativas fantásticas de Kafka e Bruno Schulz (e algumas de Tolstói, estudadas por Jakobson) se valem desse procedimento. A palavra “cognitivo” foi acrescentada a uma nova formulação, criada por Darko Suvin em seu livro Metamorphoses of Science Fiction, para definir melhor o gênero da ficção científica. O estranhamento cognitivo é o que a personagem de Yeoh (e os espectadores, consequentemente) sente ao ter a consciência pulando de versão em versão através dos universos. Mas isso rapidamente é explicado e tudo passa a fazer sentido – bem mais do que em Laranja Mecânica, que é superior tecnicamente e também em termos de texto literário (e nem estou comparando com o roteiro, falho porém genial, de Stanley Kubrick).

A questão é entender o que está por trás da narrativa de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, coisa que me espantou porque sempre achei que bons críticos de cinema já teriam há décadas dominado os códigos imagéticos e textuais da ficção científica em todos os seus subgêneros. Mas isso demanda tempo e uma disposição que nem sempre se tem.

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