Ontem comecei a reler Tzvetan Todorov para a revisão da nova edição de A Construção do Imaginário Cyber. Muita coisa aconteceu desde o fim do meu mestrado, em 2004, e a publicação da dissertação em formato de livro – obviamente. Daí a necessidade de um extreme makeover no texto, que, por motivos de deadline, acabou não incluindo uma série de autores que eu estava estudando então, Todorov entre eles.
Mas ontem, ao reler As Estruturas Narrativas, me ocorreu pela enésima vez o seguinte pensamento: como é possível escrever em um gênero determinado sem se apoiar no que veio antes? Claro, qualquer pessoa pode escrever o que bem desejar, mas escrever uma narrativa policial sem pelo menos conhecer parte do que veio antes quase sempre dá um péssimo resultado: o autor acaba reinventando a roda – e o que é pior, sem saber disso, o que só não é vexatório porque a maioria de seus leitores também não entende o suficiente do que veio antes para avaliar. Quem de vocês que me lê aqui e gosta do gênero já entendeu o comentário: será possível escrever uma narrativa de detetive de gabinete (do tipo em que o detetive não se envolve em brigas ou perseguições, mas resolve tudo com a inteligência, quase sem sair de casa) sem ter lido nada de Agatha Christie, Rex Stout ou talvez até mesmo Borges (autor com Bioy Casares do genial Don Isidro Parodi, que resolve os casos que lhe são apresentados sem sair da cela prisão em que se encontra)?
Impossível não pensar também na ficção científica, gênero em que me especializei tanto na escrita quanto na pesquisa acadêmica: quantos autores brasileiros mal conhecem meia dúzia de autores estrangeiros (o que dirá autores nacionais) e acabam produzindo textos absolutamente datados, porque tudo o que conhecem é o audiovisual do gênero, e mesmo assim talvez não passem da camada superficial hollywoodiana?
No passado, discuti essa questão muitas vezes com amigos do meio. Quase todos discordam (ou discordavam, sejamos justos) de mim, e tudo bem, porque ninguém é obrigado a concordar com tudo. Mas hoje, repensando as discussões, imagino que talvez eu não tenha me feito entender direito. Agora me ocorre que, nas discussões, nunca usei uma analogia que acho que pode explicar melhor o que quero dizer. A analogia é outra de minhas paixões e interesses, agora inclusive acadêmico: a música.
Senão, vejamos: quando alguém diz, quero montar um grupo de rock, pode até não saber tocar os instrumentos direito (estão aí os punks que não me deixam mentir), mas já têm uma noção muito boa do que querem tocar, por conta de milhares de horas ouvindo música em todos os seus formatos. Mesmo o punk dos anos 1970 que só queria (e só sabia) tocar três acordes já tinha ouvido muito blues, rock e outros bichos antes de decidir que não era nada disso que ele queria – e criar um som novo, mas que derivava dos anteriores. Os acordes estão presentes em todos gêneros musicais. Só a forma de tocar o instrumento varia.
Então, por que seria diferente na literatura? Por que alguém diz a si mesmo, vou escrever um livro de ficção científica com robôs (o que eu particularmente acho ótimo; não existem livros demais), mas só leu Eu, Robô (isso quando leu)? Onde, na bagagem literária dessa pessoa, entram R.U.R., Metrópolis, o Eu, Robô original (o título original vem de um conto de 1939 escrito por Eando Binder, pseudônimo usado pelos irmãos Earl e Otto Binder, este último aliás criador da Supergirl da HQs)? E as narrativas mais recentes, como O Homem Bicentenário, Blade Runner, os Moravecs em Ilium, de Dan Simmons, e o Murderbot dos livros de Martha Wells?
O que leva alguém a pensar que vai escrever um livro genial (ou mesmo um livro que preste minimamente) se não leu nada do que veio antes na sua área? Uma questão para pesquisa.