fight the future? (ou: ódio ao desconhecido)

a bola da vez esta semana é o ganhador do Oscar de Melhor Filme de 2023, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo. A premiação gerou um tsunami de críticas negativas na imprensa brasileira. Eu disse críticas? Esqueçam: uma definição mais adequada seria chiliques, com reações que foram do pretensamente intelectual ao simplesmente infantil, piti mesmo. Não vou me estender aqui porque este é um blog de conteúdo acadêmico, mas os textos que li me fizeram pensar a respeito das causas.

O mais arguto desses textos foi o da jornalista Jéssica Nakamura, no UOL. Jéssica analisa o que estaria por trás dessas supostas críticas, e chega à conclusão de que é o racismo, consciente ou não. Eu concordo, e já discuti o suficiente esse assunto nas redes, portanto não vou fazer isso aqui.

Acho mais importante levantar uma questão que diz respeito a dois pontos levantados pelos críticos: segundo eles, o filme seria simplesmente chato e incompreensível. São dois adjetivos que apontam para dois critérios, um subjetivo e outro objetivo. O da chatice é subjetivo, e é isso: cada um tem seu gosto, o filme não funciona para todos, nem precisa. Gosto não se discute.

Mas incompreensível? Será mesmo?

Não vou analisar o roteiro, mas hoje cedo, numa discussão no Facebook, me ocorreu o seguinte pensamento: sim, o filme pode ser incompreensível desde que o vejamos com os olhos da protagonista, a chinesa de 60 anos (vivida por Michelle Yeoh, que ganhou merecidamente o Oscar de Melhor Atriz) que vive uma vida chinfrim nos Estados Unidos e de repente é apresentada a infinitas versões de si mesma em universos paralelos. Se levarmos em conta que uma pessoa da categoria demográfica dela teria grandes chances de não fazer ideia do que seja o multiverso, sim, o filme poderia ser incompreensível.

O filme, claro, está muito longe disso, porque do meio para o fim da película o roteiro chega a ser chato (ahá!) ao explicar didaticamente o que seria esse tal de multiverso. O final (sem spoilers) é açucarado, quase agridoce, mas bem como a família hollywoodiana gosta. Portanto, é bobagem falar que o filme não faz sentido, a menos que você o abandone nos primeiros 15 minutos, como aparentemente muita gente fez e virou moda afirmar nas redes.

O que pensei foi que, em termos de intenção, os diretores (Daniel Kwan e Daniel Scheinert, que também escreveram o roteiro) fizeram a mesma coisa que Anthony Burgess em seu livro Laranja Mecânica, que tive o prazer de traduzir para a Editora Aleph há quase vinte anos (todas as edições atualmente à venda têm essa mesma tradução, apesar das capas diferentes). Burgess criou o nadsat, pseudodialeto anglo-russo, para que a narrativa de seu protagonista Alex DeLarge fosse quase incompreensível para os leitores num primeiro momento, e só depois de perseverar na leitura eles (como pessoas mais velhas tentando entender um jovem) pudessem finalmente achar que algo foi entendido na narrativa – embora sempre sem ter certeza disso.

É um procedimento muito simples chamado estranhamento cognitivo, primeiramente formulado por Roman Jakobson. O formalista russo criou o conceito de ostranienie para dar conta do choque provocado por um acontecimento fantástico no meio de uma situação aparentemente corriqueira. As narrativas fantásticas de Kafka e Bruno Schulz (e algumas de Tolstói, estudadas por Jakobson) se valem desse procedimento. A palavra “cognitivo” foi acrescentada a uma nova formulação, criada por Darko Suvin em seu livro Metamorphoses of Science Fiction, para definir melhor o gênero da ficção científica. O estranhamento cognitivo é o que a personagem de Yeoh (e os espectadores, consequentemente) sente ao ter a consciência pulando de versão em versão através dos universos. Mas isso rapidamente é explicado e tudo passa a fazer sentido – bem mais do que em Laranja Mecânica, que é superior tecnicamente e também em termos de texto literário (e nem estou comparando com o roteiro, falho porém genial, de Stanley Kubrick).

A questão é entender o que está por trás da narrativa de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, coisa que me espantou porque sempre achei que bons críticos de cinema já teriam há décadas dominado os códigos imagéticos e textuais da ficção científica em todos os seus subgêneros. Mas isso demanda tempo e uma disposição que nem sempre se tem.

Todorov e os punks

Ontem comecei a reler Tzvetan Todorov para a revisão da nova edição de A Construção do Imaginário Cyber. Muita coisa aconteceu desde o fim do meu mestrado, em 2004, e a publicação da dissertação em formato de livro – obviamente. Daí a necessidade de um extreme makeover no texto, que, por motivos de deadline, acabou não incluindo uma série de autores que eu estava estudando então, Todorov entre eles.

Mas ontem, ao reler As Estruturas Narrativas, me ocorreu pela enésima vez o seguinte pensamento: como é possível escrever em um gênero determinado sem se apoiar no que veio antes? Claro, qualquer pessoa pode escrever o que bem desejar, mas escrever uma narrativa policial sem pelo menos conhecer parte do que veio antes quase sempre dá um péssimo resultado: o autor acaba reinventando a roda – e o que é pior, sem saber disso, o que só não é vexatório porque a maioria de seus leitores também não entende o suficiente do que veio antes para avaliar. Quem de vocês que me lê aqui e gosta do gênero já entendeu o comentário: será possível escrever uma narrativa de detetive de gabinete (do tipo em que o detetive não se envolve em brigas ou perseguições, mas resolve tudo com a inteligência, quase sem sair de casa) sem ter lido nada de Agatha Christie, Rex Stout ou talvez até mesmo Borges (autor com Bioy Casares do genial Don Isidro Parodi, que resolve os casos que lhe são apresentados sem sair da cela prisão em que se encontra)?

Impossível não pensar também na ficção científica, gênero em que me especializei tanto na escrita quanto na pesquisa acadêmica: quantos autores brasileiros mal conhecem meia dúzia de autores estrangeiros (o que dirá autores nacionais) e acabam produzindo textos absolutamente datados, porque tudo o que conhecem é o audiovisual do gênero, e mesmo assim talvez não passem da camada superficial hollywoodiana?


No passado, discuti essa questão muitas vezes com amigos do meio. Quase todos discordam (ou discordavam, sejamos justos) de mim, e tudo bem, porque ninguém é obrigado a concordar com tudo. Mas hoje, repensando as discussões, imagino que talvez eu não tenha me feito entender direito. Agora me ocorre que, nas discussões, nunca usei uma analogia que acho que pode explicar melhor o que quero dizer. A analogia é outra de minhas paixões e interesses, agora inclusive acadêmico: a música.

Senão, vejamos: quando alguém diz, quero montar um grupo de rock, pode até não saber tocar os instrumentos direito (estão aí os punks que não me deixam mentir), mas já têm uma noção muito boa do que querem tocar, por conta de milhares de horas ouvindo música em todos os seus formatos. Mesmo o punk dos anos 1970 que só queria (e só sabia) tocar três acordes já tinha ouvido muito blues, rock e outros bichos antes de decidir que não era nada disso que ele queria – e criar um som novo, mas que derivava dos anteriores. Os acordes estão presentes em todos gêneros musicais. Só a forma de tocar o instrumento varia.

Então, por que seria diferente na literatura? Por que alguém diz a si mesmo, vou escrever um livro de ficção científica com robôs (o que eu particularmente acho ótimo; não existem livros demais), mas só leu Eu, Robô (isso quando leu)? Onde, na bagagem literária dessa pessoa, entram R.U.R., Metrópolis, o Eu, Robô original (o título original vem de um conto de 1939 escrito por Eando Binder, pseudônimo usado pelos irmãos Earl e Otto Binder, este último aliás criador da Supergirl da HQs)? E as narrativas mais recentes, como O Homem Bicentenário, Blade Runner, os Moravecs em Ilium, de Dan Simmons, e o Murderbot dos livros de Martha Wells?

O que leva alguém a pensar que vai escrever um livro genial (ou mesmo um livro que preste minimamente) se não leu nada do que veio antes na sua área? Uma questão para pesquisa.

a arte feita por IAs é conservadora?

algo que me ocorreu ontem à noite, durante uma troca de comentários no Facebook sobre IAs que fazem arte: o amigo Osmarco Valladão, que é quadrinhista e discutia com Carlito Machado a frequência com que as IAs mostram imagens que, na melhor das hipóteses, seriam acidentes figurativos (ao contrário dos cometidos por humanos, que podiam criar acidentes abstratos – vide Picasso e Pollock, por exemplo).

Daí me ocorreu que na verdade esses tais “acidentes figurativos” não são necessariamente acidentais, e ainda que o sejam, eles não só não acrescentam nada à história da arte como podem também representar um reforço cognitivo do “só é arte se for belo, só é belo se for figurativo”, atitude típica do nazismo e fascismo com sua classificação da arte moderna como degenerada.

Se a IA um dia se tornar autônoma e puder participar dessa discussão adequadamente, acho que teremos algo interessante. Ou então que seus programadores hoje sejam pessoas que entendam que a arte é feita para romper limites, e não se conformar a eles. Porque não existe inteligência artificial que pense por si mesma, como na ficção científica (voltaremos a esse tema em algum momento aqui), e a responsabilidade (e a culpa) pertencem aos humanos que as programam.

primeiros trabalhos acadêmicos do ano

Ontem recebi duas ótimas notícias. A primeira na verdade foi o resultado de uma notícia que recebi pouco mais de um ano atrás, quando tive um artigo aceito para publicação no livro Uneven Futures: Strategies for Community Survival from Speculative Fiction, publicado pela MIT Press e editado por Ida Yoshinaga, Sean Guynes e Gerry Canavan. O artigo, que está num formato diferente do costumeiro (parágrafos numerados à maneira das teses wittgensteinianas) foi recebido com certo estranhamento, mas depois de uma rápida troca de e-mails os editores entenderam a intenção e aceitaram o formato sem problemas.

O artigo tem o título de Kim Stanley Robinson, New York 2140 (2017) / Logistic Utopia. Nele eu elaboro o conceito de “utopia logística”, com base em Fredric Jameson em seu Arqueologias do Futuro (que eu e o amigo Tiago Meira começamos a discutir no nosso podcast Viva Sci-Fi recentemente; fiquem ligados que iremos alternar programas sobre livros e temas de FC com a leitura e análise dos capítulos desse livro) e no livro Nova York 2140, de KSR, que é um dos meus autores favoritos, não só de ficção científica, mas de literatura estadunidense, ponto. Foi um trabalho que me deu muita alegria, não só pelo conteúdo, mas também por ter conseguido emplacar uma forma não-tradicional de escrita acadêmica.

Além disso, no fim do dia recebi um e-mail que estava esperando desde antes do carnaval: o aceite do meu artigo “EU VEJO O FUTURO REPETIR O PASSADO: SOBRE OS FUTUROS PERDIDOS DE MARK FISHER” para apresentação no III Congresso Internacional em Humanidades Digitais (HDRio2023), que vai acontecer no Rio de Janeiro entre os dias 16 e 20 de abril. Mark Fisher (de quem traduzi recentemente o livro póstumo Postcapitalist Desire e sobre o qual ministrarei um curso no segundo semestre) é um dos meus focos de pesquisa, e vou ter muito a falar sobre ele e o conceito de Assombrologia nos próximos tempos.

Centauro cada vez mais distante?

Pequena meditação de fim de tarde, lembrando do conto Far Centaurus, de A. E. VanVogt. Nesse conto, publicado originalmente em 1944 na revista Astounding Science Fiction e que pode ser encontrado aqui, uma expedição vai para Alfa Centauro em estado semelhante à criogenia, pois só chegarão lá séculos depois. A estrela fica a cerca de quatro anos-luz da Terra, e como não existe maneira de ultrapassar a velocidade da luz, eles precisam desse método. Mas, ao chegarem, descobrem que nesse meio tempo foi descoberto um jeito de ir além da velocidade da luz, e a região já está colonizada – e a viagem deles foi em vão. Às vezes fico me perguntando se algo semelhante não ocorre a nós, brasileiros, em relação ao nosso pensamento acadêmico e ficcional onde se cruza com a tecnologia. Até que ponto estamos realmente produzindo textos no estado da arte com relação ao que se faz lá fora? Aliás, isso é importante, ou sequer relevante? Tenho formulado uns pensamentos com relação aos chatbots (o ChatGPT em particular, mas não só ele) e também com relação a algo que não está diretamente ligado a isso mas a ideia de mentalidade de primeiro versus terceiro mundo: o recente anúncio da “atualização” dos livros do escritos Roald Dahl. Mais sobre isso em breve.

convergências da nostalgia

Hoje os algoritmos me trouxeram uma convergência que, se não inesperada nos dias que correm, pelo menos é um pouco auspiciosa. Um texto do Jamil Chade via Facebook, uma matéria da BBC compartilhada num grupo acadêmico no Whats, e uma postagem no blog do Octavio Aragão trazem todas a questão da nostalgia e de como ela pode ser perniciosa.

Os textos não tratam exatamente do mesmo assunto, mas desta vez o algoritmo (nome que, acho, às vezes usamos de maneira muito abrangente e talvez leviana, mas isso é assunto para outro post) foi realmente na mosca. O texto do Jamil é uma espécie de “carta aos homens de bem” – com uma certa ironia e muita tristeza, ao contar a infame história do Batalhão 101, composto em sua maioria de homens que não tinham nada a ver com a SS mas que queriam “apenas” matar judeus (aviso: o texto é curto mas doloroso). A matéria da BBC já dói na primeira frase, citação de uma entrevistada que esteve no ato terrorista de 8 de janeiro: “Você é patriota ou ‘jornazista’?” A matéria é uma pequena mas potente análise do poder de destruição das mídias sociais nas mentes dos bolsonaristas radicais, em particular dos mais velhos (com um aparte muito pertinente da antropóloga Mirian Goldenberg nos alertando contra uma possível “velhofobia”, pois os idosos não foram os únicos atingidos pela lavagem cerebral da extrema direita). E, para fechar, o post do Octavio (que, além de um grande quadrinista, professor universitário e pesquisador da área de Design), apontando justamente a nostalgia que comentei no começo do post, usando como exemplo um vídeo recente de um influencer de direita.

Essa convergência me deu mais o que pensar neste domingo modorrento e pré-carnavalesco em São Paulo. É ruim ter saudades do passado? Até que ponto a lembrança de coisas boas da infância e da juventude é precisa? Será que não lembramos com mais generosidade do que passou?

Ou a questão seria outra? E se lembramos com precisão sim, mas tomamos o que foi bom para nós como se automaticamente tivesse sido bom pra todo mundo, e por isso queremos impor ao mundo um retorno ao passado?

Escrevo tudo isso ouvindo post-punk do século 21. Se eu tivesse escrito a frase anterior nos anos 1980, provavelmente teriam me dito para deixar de bobagem, porque seria uma péssima ficção científica, com uma tremenda falta de imaginação – e no entanto estou ouvindo um tipo de música que foi importante para a minha formação, nos tempos de CEFET e de universidade.

Agora me pergunto: isso seria uma forma de nostalgia? Ouvir um mesmo estilo musical ao longo de décadas, ainda que renovado durante esse tempo por grupos novos, com novas vozes (ainda que se pareçam muito com as antigas, como já disse antes aqui mesmo), será isso um recurso à nostalgia? Porque não tenho saudades do passado per se, mas de algum modo quero reter uma certa textura, uma certa ambiência que me cercava na juventude e que me fazia feliz. Não me cerco dessa textura o tempo todo, assim como não uso sempre o mesmo estilo de roupa nem as mesmas cores (algo a se analisar mais à frente, aliás). Mas quem se deixa levar pelo fantasma da nostalgia estaria tentando se cercar em caráter definitivo dessa textura, dessa ambiência? A ponto de criar uma realidade alternativa que cercasse a pessoa como o famoso “campo de distorção da realidade” de Steve Jobs? Ou, para os cinéfilos, um “Adeus, Lênin” só que reacionário?

quem será nosso Iain Sinclair?

Pensamento Fisheriano do dia, após me recuperar da surpresa e do estranhamento de ouvir Muzak num restaurante no centro de São Paulo (ainda se produz Muzak?): as obras de Mark Fisher estão repletas de menções a autores e livros ingleses, o que faz todo o sentido, claro, pois Fisher era inglês. Apesar disso, seu pensamento, enraizado na cultura pop, pode ser perfeitamente traduzido (e está sendo) para o português.

Mas, na hora de explicar Fisher para uma classe universitária brasileira, será que todas as referências mencionadas por ele serão compreendidas? Sim, elas podem ser explicadas, mas e se pudermos explicar com nossos próprios exemplos? Que autores brasileiros Fisher (ou algum brasileiro que estude assombrologia) poderia mencionar? Que autores contemporâneos falam da cidade (por cidade entenda-se qualquer metrópole), suas andanças, suas paisagens urbanas, sua música?

Quem já leu toda a série da Liga Extraordinária, de Alan Moore e Kevin O’Neill, deve ter reparado num personagem chamado Andrew Norton, o Prisioneiro de Londres. Norton, que por algum motivo obscuro está preso no espaço (não pode deixar jamais a sua cidade), mas não no tempo, motivo pelo qual ele vive saltando entre diferentes épocas, não foi um personagem inventado por Moore. Ele apareceu originalmente pela primeira vez no livro Slow Chocolate Autopsy, de Iain Sinclair, amigo de Moore. Na série de quadrinhos, Norton é desenhado à semelhança de Sinclair.

À exceção de uma única história, publicada em 2017 num volume de quadrinhos pela Editora Veneta (A Vida Secreta de Londres, org. Óscar Zarate), não existe nada de Iain Sinclair publicado no Brasil. Deveria haver: Sinclair talvez seja o autor que mais se dedicou a explorar sua cidade, Londres. Mesmo que não seja, provavelmente foi o que mais a percorreu a pé. Através da psicogeografia, Sinclair já percorreu grandes distâncias para explorar os trajetos de ruas, rios, prédios e seus labirintos, monumentos não tão antigos construídos para fins já esquecidos ou superados. Assim como seu amigo Alan Moore e Peter Ackroyd, Sinclair está profundamente enraizado na cidade, ou, como já foi dito num perfil acadêmico, na Matter of London, esse termo intraduzível mas que podemos entender como tudo o que permeia essa cidade, a questão envolvendo Londres, que como toda urbe secular, é ela própria uma entidade, um ser vivo, pulsante com diversos tipos de energia, e por cujas artérias circulam seus habitantes. (São metáforas velhas, clichês, mas nem por isso menos verdadeiros ou potentes.)

E no Brasil, quem será nosso Iain Sinclair?

O candidato mais provável talvez seja João do Rio, que dedicou sua vida a flanar pela cidade maravilhosa, descrevendo seus mais belos salões de baile e seus recantos mais sórdidos. João do Rio foi psicogeógrafo antes mesmo desse termo existir, e seus livros (recomendo em particular As Religiões no Rio, o meu favorito) serve como um excelente ponto de partida para quem quiser conhecer melhor o Rio que ainda existe. E nem falamos ainda da cidade de hoje, como Iain Sinclair fez em The Last London, um livro dedicado justamente às metamorfoses dessa cidade ao longo dos séculos e o que ela é neste momento. Tem alguém fazendo isso com relação ao Rio de Janeiro?

Claro, seria de uma sudestinidade ridícula e insuportável falar apenas de João do Rio e achar que o Rio representaria totalmente o Brasil. Não: poderíamos falar de João Antônio (São Paulo), Bernardo Élis (Mato Grosso), João Ubaldo Ribeiro e Jorge Amado (Bahia), Jamil Snege (Paraná), Dalcídio Jurandir (Pará) e dezenas, talvez centenas de outros (e outras) que já escreveram sobre seus estados e suas maiores cidades .

Mas esses autores não dão conta do hoje. Precisamos não de um, mas de uma legião de Iains Sinclairs, um para cada metrópole brasileira. Psicogeografar o país é uma forma de conhecê-lo em sua multiplicidade – para entendê-lo e quem sabe fazer algo de produtivo com esse entendimento.

PS: A referência ao muzak no começo do post é porque isso fez com que eu me lembrasse do livro The Condition of Muzak, de Michael Moorcock, outro britânico que já escreveu muito sobre Londres (tanto versões alternativas dela quanto relatos autobiográficos). Fisher citava Moorcock volta-e-meia. Como vocês veem, a referência não é gratuita, mesmo que num primeiro momento possa não fazer sentido nem ter utilidade.

a ideia de um cânone

Dois dias atrás, uma convergência fortuita (mesmo que pela via algorítmica) de posts de diferentes mídias sociais me trouxe duas coisas interessantes.

A primeira foi um post no Instagram onde um leitor me tagueou porque tinha acabado de ler minha tradução de LARANJA MECÂNICA e gostado. Mas nunca leia os comentários: a maioria esmagadora deles era de leitores que diziam querer muito ler, mas não conseguiram porque a escrita era muito difícil e/ou densa.

No mesmo dia, o Facebook me traz esse post abaixo, do amigo Steven Shaviro, autor de Doom Patrols e Discognition:

I try really hard to make my own science fiction fandom congruent with fandom more generally. But I come across way too many online reviews of sf texts that complain that the texts are “confusing”, when all they are doing is using a “lite” version of modernist techniques that were already common enough as to have been absorbed into the wider culture a century ago.

Numa tradução apressada:

Eu me esforço muito para fazer com que meu próprio fandom de ficção científica seja congruente com o fandom de forma mais geral. Mas me deparo com muitas resenhas online de textos de FC que reclamam que os textos são “confusos”, quando tudo o que eles estão fazendo é usar uma versão “leve” de técnicas modernistas que já eram comuns o suficiente para serem absorvidas pela cultura mais ampla há um século.

É uma questão com a qual eu venho lutando desde meu mestrado, há mais de vinte anos: como transmitir aos não-leitores de ficção científica os códigos necessários para a leitura e fruição do gênero? Durante um bom tempo defendi a ideia de um cânone justamente para isso, servir de porta de entrada para a ficção científica. Mas a ideia de um cânone é algo que vem do século vinte (que já vai longe, pelo menos cronologicamente) e foi popularizada nos anos 1990 por Harold Bloom. Se não é tão antiga, tem jeito de.

Mas quem precisa de um cânone hoje, em 2023? Os professores ou os alunos? Aqueles que mais precisariam (assim acreditamos) de um cânone não se interessam por ele. O que poderia substituir um cânone? Precisamos substituir um cânone por alguma outra coisa que ainda não sabemos qual seja? E, talvez a pergunta mais importante que não costuma ser feita: com que objetivo? O que nos propomos a mostrar, dentro de um campo tão vasto quanto o número de autoras e autores que nele habita?

nada de novo no front musical no século 21?

Vi uma postagem no Facebook alguns dias atrás sobre um incomodo que parece se disseminar entre a minha geração: segundo o autor, ele esperava que aparecessem hoje em dia cantores e cantoras tão poderosos quanto os que ouvíamos em nossa juventude. Os exemplos dados por ele: Robert Plant, Ian Anderson, Freddie Mercury, Gil, Milton, Raul Seixas, João Bosco, Cazuza, Gal, Janis Joplin. Uma possível explicação pensada por ele: “os vocalistas parecem sobrepor o estudo de técnicas de padronização de forma a recusar desenvolver o seu próprio timbre natural”.

Num primeiro momento, pensei em responder que outra explicação possível seria que a nossa geração já está chegando à casa dos sessenta, então é natural que a nostalgia comece a bater com força. Mas eu estava justamente começando a ler Fantasmas da Minha Vida, do Mark Fisher (recomendo), e, ainda que o saudosismo também faça sentido como explicação, Fisher faz uma observação bem parecida no seu livro, não diretamente ligada à questão da voz, mas sempre vinculada à música. Ele recusa a narrativa de que “são os velhos que não conseguem entrar em um acordo com os mais novos, afirmando sempre que antigamente era melhor”. Para ele, no entanto, isso não vale mais:

“Imagine um disco lançado nos últimos dois anos sendo alçado para trás no tempo, para 1995, por exemplo, e colocado para tocar no rádio. É difícil pensar em um grande impacto nos ouvintes. Pelo contrário, o que mais poderia chocar nosso público de 1995 seria o quão reconhecível é o próprio som: teria realmente a música mudado tão pouco nestes últimos dezessete anos?”

Fisher, 2022

Nos últimos tempos tenho percebido que, embora 90% do que eu ouço (estimativa porca) seja coisa nova, produzida nos últimos 5 anos, a maioria das canções post-punk que ouço tem apenas dois tipos de vocais: no feminino, cantoras que imitam Siouxsie; no masculino, cantores que imitam Robert Smith. Há exceções pra lá de honrosas, como Volkan Caner, da banda turca She Past Away, mas mesmo ele já está sendo imitado (e o estilo dele, embora potente, também me parece pegar emprestado algo de outros que vieram antes). Acho que já dá pra ver algo no horizonte em termos de novidade, mas muito, muito ao longe ainda. Mais sobre isso em outro momento.

Bibliografia

FISHER, Mark. Fantasmas da Minha Vida. São Paulo: Autonomia Literária, 2022

Fragmentos sobre o Twitter: um pós-doc

Último dia de um annus horribilis, que começou com uma corrida ao pronto-socorro em Roma e está terminando com um dia (felizmente) quente e modorrento em São Paulo. De tudo o que aconteceu não cabe falar aqui; digo apenas que sou grato por estar vivo e com saúde. A produção vai bem, obrigado, e 2023 deverá ver muitas novas publicações, tanto de ficção quanto acadêmicas.

Para comemorar, então, decidi dar um presente a vocês neste blog recém-criado: o meu trabalho de pós-doutorado, realizado na ECA-USP entre 2011 e 2012. Dizer que em dez anos muita coisa mudou é um clichê imenso, e no entanto é isso mesmo. Escrevi esses fragmentos sobre o Twitter sobre forte inspiração de Wittgenstein (o formato de teses) e Deleuze (o pensamento meio selvagem e fora da caixa). Não sei mais se concordo com grande parte do que escrevi, mas como documento de uma era ainda incipiente do Twitter (que florescia como rede social e também no território da arte, através do que na época se chamou Twitterfiction) continua válido. Foi a twitterficção, aliás, que me inseriu no mundo literário anglófono, mas essa é uma história para outro dia.

Um último motivo para a publicação deste texto é que amanhã, 1o de janeiro de 2023, vou deixar o Twitter definitivamente. Foram quase 15 anos de uso dessa rede, que me fez muito feliz mas agora se tornou tóxica demais para mim. Foi bastante tempo e está bem assim. Continuarei usando outras redes (por enquanto), e de agora em diante vou postar os textos mais relevantes neste blog. Espero que os Fragmentos sirvam de algum modo para quem desejar pesquisar o que era o Twitter nos primórdios.

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Fábio Fernandes

Fragmentos sobre o Twitter

São Paulo, 2011

“…the street finds its own uses for things”

William Gibson, Burning Chrome

“Os sistemas de circuitos elétricos derrubaram o regime de “tempo” e “espaço” e despejam sobre todos nós instantaneamente e continuamente as preocupações de todos os outros seres humanos. Eles reconstituíram o diálogo em escala global. Sua mensagem é Mudança Total, dando fim ao paroquialismo psíquico, social, econômico e político. Os antigos grupamentos cívicos, estatais e nacionais tornaram-se impraticáveis. Nada mais distante do espírito da nova tecnologia que ‘um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar’. Você já não pode voltar para casa de novo.”

Marshall McLuhan, O Meio São as Massagens

Prefácio

O objetivo deste livro não é aproveitar uma nova onda, ou antes, não é tratar o Twitter como uma nova onda. O mesmo foi dito dos blogs há cerca de dez anos, e no entanto eles estão aí até hoje, cada vez mais fortes. O Twitter é apenas uma das mais novas ferramentas (e no momento em que você, leitor ou leitora, estiver lendo isto, certamente já não será a mais nova, ou talvez nem tão nova assim, mas aposto que ainda estará bastante em evidência) de comunicação entre pessoas, de coesão e união entre membros da hoje já quase inteiramente consolidada Aldeia Global de que falava Marshall McLuhan.

Ainda precisamos caminhar muito para unir totalmente os membros dessa aldeia. A consistente censura aos órgãos de imprensa na Venezuela não ajuda muito; por outro lado, a quantidade de iranianos, em Teerã e fora do Irã, que usou maciçamente o Twitter para denunciar os desmandos do governo de Mahmoud Ahmadinejad após as eleições de 2009, supostamente fraudadas, impressionou o mundo – e a Primavera Árabe, movimento que começou na Tunísia em dezembro de 2010 mas que no final de janeiro de 2011 (com uma grande ajuda do Twitter e outras redes sociais já havia chegado ao Egito e derrubado o ditador Hosni Mubarak? Em uma escala menor, os clientes da livraria virtual Amazon se uniram imediatamente quando ela deixou de registrar em seu sistema de rankings os livros GLBT de seu catálogo, dando início a um movimento que durou menos de um dia e que ficou conhecido como #amazonfail (em tempo: o símbolo de jogo-da-velha antes da palavra é conhecido, no jargão do Twitter, como hashtag, um marcador criado para comunicação interpessoal no antigo sistema IRC (Internet Relay Chat) e que separa as palavras mais importantes para facilitar a busca posterior na timeline da página (e, se você ainda não está entendendo nada do que eu estou dizendo, o glossário no final do livro vai tirar suas dúvidas).

Este livro é basicamente a inquietação de um pesquisador que é acima de tudo um usuário apaixonado pelas novas mídias, desde o tempo em que elas eram realmente novas.

Não espere respostas. Talvez você encontre algumas: mas os questionamentos, como sempre costuma ocorrer em uma pesquisa, serão bem mais instigantes.

Fábio Fernandes

São Paulo, 2011

Os Fragmentos

1.  A origem do Twitter, ou seja, o momento de sua inserção técnica no mundo dos objetos, tem um grau zero que não se pode discutir: é 2006, em San Francisco, California, USA. Seus criadores foram Jack Dorsey (http://twitter.com/jack) e Biz Stone (http://twitter.com/biz), apoiados por Evan Williams, criador do Blogger e atual sócio dos dois.

É o Twitter um objeto técnico baudrillardiano no sentido virtual?

Um gadget, ou um applicativo/software, apoio, muleta para gadget – um metagadget, poderíamos concluir?

Quando escreveu O Sistema dos Objetos, em 1968, Jean Baudrillard dedicou uma parte inteira ao gadget, para ele um genial aparelho de não fazer nada. Ele encara os gadgets como “aberrações funcionais”, que rompem o equilíbrio técnico do objeto:

“Muitas funções acessórias desenvolvem-se quando o objeto somente obedece à necessidade de funcionar, à superstição funcional: para não importa que operação, há, deve haver um objeto possível: se não existe, é preciso inventá-lo”. (BAUDRILLARD, 1973)

Baudrillard cita como exemplos aparelhos no limite entre o funcional e o supérfluo, como um descascador de ovos movido a energia solar, mas não poupa críticas até mesmo ao relógio de pulso, que, “enquanto objeto nos auxilia a nos apropriarmos do tempo”, fazendo dele “um objeto consumido”. (BAUDRILLARD, 1973, p. 122) Não se trata mais de se saber a hora, mas por meio de um objeto, possuí-la.

O passar dos anos não dará a Baudrillard nenhuma paz tecnológica: no artigo que dá nome ao livro Tela Total, de 2005, ele não mede palavras: “Vídeo, tela interativa, multimídia, Internet, realidade virtual: a interatividade nos ameaça de toda parte. Por tudo, mistura-se o que era separado; por tudo, a distância é abolida: entre os sexos, entre os pólos opostos, entre o palco e a platéia, entre os protagonistas da ação, entre o sujeito e o objeto, entre o real e o seu duplo. Essa confusão dos termos e essa colisão dos pólos fazem com que em mais nenhum lugar haja a possibilidade do juízo do valor: nem em arte, nem em moral, nem em política”.

Dando continuidade aos pensamentos de Simulacros e Simulações (1991), Baudrillard encara o ciberespaço como uma mera simulação, onde não existe possibilidade de se descobrir alguma coisa. A Internet “apenas simula um espaço de liberdade e descoberta”. Ela não ofereceria “mais do que um espaço fragmentado, mas convencional, onde o operador interage com elementos conhecidos, sites estabelecidos, códigos instituídos”. E conclui: “Nada existe para além desses parâmetros de busca”.

Esse texto, escrito em 6 de maio de 1996, quando a Web ainda está na sua infância, pode ser considerado também um texto primordial, no sentido de que ainda não trabalha com todo o potencial que a Web tem para oferecer. Ou seja, ainda não haviam se instituído todos os códigos da Web – e ainda não foram estabelecidos todos. Provavelmente jamais serão. Onde se traça a linha, onde se define o limite de um para-espaço?

2. Entretanto, o Twitter como ideia sempre existiu, no mundo daemonico de Platão. O twitter como conceito sempre esteve lá.

A crítica de Baudrillard é essencialmente uma crítica à máquina de modo genérico: se Marx postula que a religião é o ópio do povo, para ele a tecnologia é a droga que aliena aquele que tem condições de possuí-la, pois só o fato de poder possuí-la caracterizaria o gesto como supérfluo – paradoxo insolúvel e insuportável para Baudrillard, bem como para outro pensador francês, Paul Virilio.

Em O Espaço Crítico (1993), retomando um tema do livro A Máquina de Visão (1994), Virilio continua com sua política do pânico tecnológico com uma reclamação sobre a questão do predomínio da medição sobre a prova do olhar, ou seja, o que é medido por instrumentos passa a ter precedência pelo que vimos. A elaborar essa chamada “fratura morfológica”, Virilio faz a seguinte constatação:

“Como podemos ter deixado de acreditar em nossos próprios olhos (grifo do autor) para crer tão facilmente nos vetores da representação eletrônica e, sobretudo, no vetor-velocidade da luz? (idem) Não estaríamos nós diante de um obscurantismo da relatividade, de um culto-solar reencontrado?” (VIRILIO, 1993, p. 31)

Curiosa a obsessão de Virilio pela visão. Curiosa mas não despropositada: o olhar é uma de nossas primeiras mediações com o mundo; o que nos dá um contato “imediato” com o nosso entorno.

Mas não encontramos em Virilio a consciência de que há décadas os aviões são pilotados apenas por instrumentos, ou seja, o piloto não realiza o voo da aeronave que comanda olhando através do vidro do veículo, mas sim confiando nos pretensos “vetores da representação eletrônica”, que são, no caso, os radares e os computadores conectados aos sistemas de tráfego aéreo, que se alternam de acordo com a região do espaço sobre a qual se encontra a aeronave.

Apesar de transtornos e crises aéreas ocorridas no mundo inteiro, o número de acidentes, proporcionalmente, diminuiu bastante desde que a navegação aérea parou de usar a identificação visual como único modo de orientação espacial, durante a II Guerra Mundial, com a invenção dos sistemas eletrônicos “Loran” (long range navigation, ou “navegação de longo alcance”) e “Decca”, baseados em ondas de rádio de alta frequência emitidas por estações fixas, e captadas pelo veículo em movimento. (PAZ, 1997, p. 5).

No entanto, até que ponto a visão sempre nos ofereceu efetivamente o imediato, como Virilio afirma? E não estamos mencionando sequer dos daltônicos ou míopes, que não podem mesmo acreditar em seus próprios olhos sem o auxílio de uma mediação mecânica (apenas os míopes podem fazê-lo; os daltônicos nem isso). Entraríamos, portanto, desde o começo, na distinção do normal versus patológico feita por Canguilhem e retomada posteriormente por Foucault.

É preciso ressaltar ainda a preocupação de Virilio com o chamado “mutilado” em comparação com o normal. No capítulo Corpos Incapazes (VIRILIO, 1993), ele aponta o (real) emprego do contingente de deficientes físicos que, dispensados na França na Primeira Guerra Mundial, são aproveitados na Alemanha:

“Em 1914, o exército alemão praticamente não admite a existência de irrecuperáveis porque decidiu funcionalizar os deficientes físicos utilizando cada um deles justamente segundo sua deficiência: os surdos-mudos são empregados na artilharia pesada, os corcundas, na condução de automóveis etc. Paradoxalmente, a ditadura do movimento exercida sobre a massa pelo poder militar resultava na promoção dos corpos incapacitados”. (VIRILIO, 1993, p.68.)

A Virilio parece estranho que alguém que não tenha um braço ou uma perna possa usar uma prótese. A ele parece assustar a possibilidade de que a prótese torne o indivíduo mais-que-humano (uma leitura equivocada do “übermensch” de Nietzsche?)

Virilio parece desejar que o indivíduo a quem falta um membro aceite e se conforme com uma condição pretensamente natural. Virilio enuncia um desejo de normal que pertence à esfera da pré-modernidade, e abarca, na melhor das hipóteses, a primeira fase da modernidade: um conjunto de regras técnicas (tekhné)  definindo o que deve ser normal e o que não pode ser normal.

Virilio alude a esse problema de mediação (expressão nossa) dando o exemplo de Galileu:

“(…) uma imagem sintética que não é mais da ordem da observação direta e tampouco da visualização ótica inventada por Galileu, estando vinculada a receptores eletromagnéticos ou, ainda, a analisadores de espectro e de ‘frequências-metro’ em que a própria aquisição de dados é realizada por computadores”. (VIRILIO, 1993, p. 31)

Perguntamos: a lente que “conserta” a deformação do cristalino, não é ela própria, ao ser mediadora da visão, algo que não está mais na ordem da visualização direta pelo simples fato de que é uma lente que “olha”, e não o olho humano nu?

3. Logo, é infrutífero (embora interessante do ponto de vista histórico) tentar descobrir o twitter-antes-do-twitter, porque ele certamente existe. E existe no plural: pesquisar isso é como desenterrar uma genealogia web-bíblica.

As mediações podem exercer um efeito pouco salutar em nossa relação com o mundo? Talvez, mas os exemplos que Virilio nos oferece para essa reflexão são inadequados, aparentemente frutos de um pânico contra o virtual, mas o virtual eletrônico, maquínico, ou diríamos, cibernético. Embora devamos ressaltar que, desde antes de Leon Battista Alberti inventar o teodolito e Galileu a luneta, já se produz um virtual fora do olho humano; já existe uma mediação que nos faz ver além do olhar: aqueles que têm olhos com deformidades no cristalino veem as coisas de determinado modo sem os óculos, e de outro modo quando os usam. Os óculos, embora se desconheça quem seja seu inventor, já eram conhecidos na China e em Veneza no final do século doze, sendo nitidamente diferenciados das lentes de aumento, como observa Chiara Frugoni:

“Um decreto de 2 de abril de 1300, dirigido aos que trabalhavam com vidro e cristal, proibia uma falsificação que certamente já acontecia há muito tempo: ‘comprar ou fazer adquirir, vender ou fazer vender lentes comuns de vidro não-colorido, fazendo acreditar que se trata de cristal, como por exemplo botões, maçanetas, vidro para lunetas e para os olhos’.”

Ainda segundo Frugoni, os óculos diferem da lente de aumento porque, enquanto a lente de aumento permite que o presbíope veja porque aumenta a medida das coisas, as lentes biconvexas dos óculos suprem a convexidade insuficiente do cristalino do presbíope e permitem que os objetos sejam vistos em suas dimensões reais. E conclui: “Os óculos, por assim dizer, fazem um só corpo com os olhos: a lente, com o objeto”.

Frugoni se refere sempre à presbiopia porque, segundo ela, as lentes para a correção da miopia só apareceriam no século dezesseis, e, para a correção do astigmatismo, no século dezenove. Mas o conceito dos óculos como algo que “corrige”, um instrumento que complementa a ação do olho humano em vez de distorcê-la, já era conhecido na época de Francesco Petrarca, que na carta Aos Pósteros, escrita em 1351, dizia ter tido “olhos perspicazes, por longo tempo de grandíssima acuidade, a qual, contra todas as expectativas, acabou me traindo, depois dos 60, quando fui obrigado a recorrer com relutância ao auxílio das lentes.” Antes mesmo disso, aproximadamente em 1268, o frade franciscano inglês Roger Bacon escreve, em sua Ciência Experimental, sobre a possibilidade de se utilizar lentes para “que se consiga ler letras pequeníssimas de uma grande distância.”

Virilio faz uma série de referências ao fim da luz natural e no fim do dia, substituída por uma luz eterna. Em seu livro Against the Day (2007), o escritor norte-americano Thomas Pynchon introduz como epígrafe uma citação de Thelonious Monk que vai na contramão do medo viriliano: “It´s always night, or we wouldn´t need light”. (Literalmente: é sempre noite, ou não precisaríamos de luz). Essa frase, dita por Monk de um modo pretensamente críptico, tem sua lógica: a luz sempre foi necessária para os seres humanos, em espaços fechados durante o dia ou durante a noite de modo geral. Virilio parece pregar contra um pretenso artificialismo que teria surgido desde a Revolução Industrial e que ignora o uso de ferramentas pelos humanos desde os primórdios.

Paul Virilio critica a Internet de um lugar de cultura anterior ao momento no qual escreve, e esse lugar é o imediato pós-Segunda Guerra Mundial. Para alguém egresso desse nexus sócio-cultural, a velocidade parece ser encarada como algo maligno, que atrapalha mais do que ajuda, e que a rigor não é constituinte da condição do ser. (grifo nosso) A elaboração do conceito de dromologia é um achado, mas se, segundo McLuhan, o meio é a mensagem, a velocidade é o meio. A velocidade é um elemento constituinte da condição da cibercultura – a começar pela instantaneidade dos processos de comunicação.

Mas a velocidade – ou, talvez devamos dizer, o desejo de velocidade – não é uma questão nova. Ela já vinha sendo investigada antes do nascimento de Virilio – particularmente pelos futuristas.

4. Assim como, no Gênesis, Henoc gerou Irad, que gerou Maviael, que gerou Matusael, que gerou Lamec (e esta é somente a descendência de Caim), também à ideia do Twitter foi gerada por uma ideia anterior; se esta ideia foi o Blogger, o Orkut, o MySpace ou o Facebook não é importante neste momento.

Até por que certamente surgirão (já estão surgindo) outras ferramentas de microblogging, melhores e mais eficientes, que tornarão a discussão sobre tecnologia moot point, ou seja, boba, desnecessária.

Tomemos como exemplo o Formspring, por exemplo. Ele não chega a ser uma mídia, mas uma ferramenta, um sistema criado para servir de diversão e que se integrou rapidamente ao Twitter, mudando também de objetivo e função: ele agora também serve não só como “caderno de perguntas e respostas”, mas também como chat fora do tempo real, uma conversação em slow time, um complemento ao Twitter, ao Facebook e ao e-mail, se quisermos.

Como disse o escritor de ficção científica William Gibson no conto Burning Chrome, “a rua encontra seus próprios usos para as coisas”. Nessa narrativa, o autor de Neuromancer queria dizer que equipamentos tecnológicos de modo geral nunca são somente utilizados para a função para a qual seu(s) criador(es) a pensou primordialmente. Se isso ocorre com computadores e mesmo com drogas (o Viagra foi desenvolvido inicialmente como dilatador vascular para o músculo cardíaco, e não para os vasos penianos), quanto mais com ferramentas de comunicação como o Twitter, que são prontamente apropriados pelos seus usuários. Se antigamente o céu era o limite, hoje o limite é apenas o código de programação – e, dependendo da proficiência de seus usuários, nem isso.

5. O importante é que o Twitter vale tanto com relação ao seu caráter de rede social quanto justamente por uma função de subversão da linguagem.

O Twitter não serve apenas para dizer o que você está fazendo. Ao contrário: desde sua criação, ele vem sendo usado como plataforma para publicação de ficções, verdadeiros nanocontos (porque muito menores que microcontos), que subvertem o sentido inicial da ferramenta: sua função de comunicar um fato se desmancha no ar, se metamorfoseia na narração de uma história.

6. Ao contrário do que muita gente pensa, o Twitter não existe necessariamente para você SE comunicar com o outro, mas para você COMUNICAR algo de SI MESMO com quem quiser ler você.

Quem lê tanta notícia?, dizia Caetano naquela antiga canção. Importa responder essa pergunta? O essencial não é invisível aos olhos, como disse um dia Saint-Exupery. O essencial se multiplica de modo cada vez mais visível não só em bancas de revistas, mas principalmente na Web. The plot thickens, como se diz no idioma de Shakespeare e Conan Doyle. A trama se adensa. O conteúdo também. E cresce.

Isso não significa necessariamente que ele seja profundo. Deixemos essa discussão para os jornalistas.

7. O Twitter é um monólogo interno, só que do lado de fora (como o pára-brisa daquela velha piada).

Porque é importante frisar: o Twitter não é jornalismo. O Twitter é o Twitter. Ele se basta em si mesmo. Em seu território, o meio verdadeiramente é a mensagem. Ali cada dono de conta é dono de seu nariz, ou de sua arroba, de sua conta. (É interessante lembrar o significado do símbolo da arroba: em inglês, @ significa a palavra at, que quer dizer em, como em casa, por exemplo. O Twitter é a casa do seu usuário. O lar de um homem é o seu castelo, diz o velho ditado. O Twitter de uma pessoa é o seu universo, o seu monólogo interno. E ninguém tem nada a ver com isso. A não ser que essa pessoa queira, claro.

8. Na verdade, não dialogamos, mas monologamos o tempo todo.

Em Ser e Tempo, Heidegger observa que o Gerede, o falatório que nos acomete o tempo todo, embora não deva ser tomado em um sentido pejorativo (antes, é “um fenômeno positivo que constitui o modo de ser da compreensão e interpretação da pre-sença[1] cotidiana”), é o discurso sem solidez, que “não apenas dispensa a tarefa de uma compreensão autêntica  como também elabora uma compreensibilidade indiferente, da qual nada é excluído (grifo nosso)”. Esse Gerede seria fruto da modernidade ou mero blábláblá cotidiano que todo mundo sempre fala? É preciso que nossa fala seja sempre inteligente, digna de figurar em livros de citações? Nossos enunciados são sempre absolutamente sentidos? Não, porque não vivemos a vida em diálogo, mas em monólogo, em um fluxo constante de pensamento conosco mesmo, que periodicamente se entrelaça com outros monólogos e compõem mosaicos que costumamos chamar de diálogos, ou, quando envolvem mais de duas pessoas, de conversas (estou generalizando de propósito, evidentemente)

9. Diálogos são invenções do romance, do folhetim do século dezoito. As tragédias gregas, as peças dos clássicos, são quase todas em monólogos que se entrecruzam, o que não é o mesmo que um diálogo.

O diálogo perfeito só existe na ficção. Os primeiros diálogos perfeitos talvez sejam os de Sócrates. Na vida real (se é que isto existe e não é mais uma construção social, mas isto é outra história), pessoas se perdem em linhas de tempo individuais, interrompidas ocasionalmente por protocolos (por exemplo, cumprimentos) que as permitem se comunicar umas com as outras e conviver em sociedade. Os diálogos reais são monólogos paralelos que ocasionalmente se reconhecem. O Twitter é uma excelente ferramenta de mapeamento desses monólogos paralelos.

10. Contudo, por menos que as pessoas queiram responder umas às outras, por menos que elas queiram dialogar, elas certamente estão ali para pertencer (e é justamente por isso que o monólogo interno se apresenta do lado de fora, à vista de todos).

Ninguém entra na Web para ser anônimo. Muito menos no Twitter, cujo primeiro slogan publicitário foi justamente “what are you doing?” Ora, se a frase que oferece o serviço da ferramenta ao usuário propõe justamente que o usuário a utilize para dizer a todos o que faz, não importa que ele não queira dialogar. Ele pode até mesmo dizer que está indo ao banheiro. Terá imediatamente uma legião de seguidores não a vê-lo (o Twitter não tem vídeo), mas a saber aquilo que talvez não fosse necessário ser sabido – e será que alguém se interessaria? O usuário que colocou a informação ali certamente achou que isso seria relevante. O motivo? Esse, deixemos aos psicólogos.

11. Então o sentimento de “pertença”, como diz Janina Bauman, está na base do sucesso do Twitter.

Mesmo os que dizem que nada querem (leave me alone, não me sigam que eu não sou novela ou seja lá quais forem os novos jargões-chavões-frases de efeito das novas gerações ou novos usuários) não estão numa rede social a toa. O Twitter é a rede social com o maior número de nós, justamente porque, ao contrário do Facebook ou do Orkut, não possui páginas comunitárias, que precisam necessariamente ser compartilhadas por todos e gerenciadas por um em detrimento dos demais. Enquanto as redes sociais em geral são a encarnação possível da alucinação consensual do ciberespaço original de William Gibson em Neuromancer, o Twitter é a alucinação individual. O único consenso é de que o Twitter existe.

12. Mas a pertença é a quê, especificamente? A que grupos ou tribos queremos nos unir quando mergulhamos nesse riocorrente, caudaloso riverrun joyceano que é o Twitter?

Um recurso criado a posteriori no Twitter é o de criação de listas, que permite que você acompanhe em uma página separada (aí há, estranhamente, o retorno à alucinação consensual primeiramente sonhada por Gibson e depois desenvolvida por Tim Berners-Lee no CERN – a natureza humana parece abominar o vácuo medicamentoso de software). Essas listas podem ser criadas do nada, ao bel-prazer do usuário, e a característica mais interessante delas é que o usuário listado não precisa ser consultado para saber se quer ou não ser introduzido na lista. Muitas vezes o usuário se pega surpreendido ao olhar para o canto superior direito de sua página, onde se encontra, em letras minúsculas, a palavra listed (listado), e percebe que ali há um número. Esse número é o número de listas nas quais ele se encontra, à sua revelia – ou não; nos tempos de Jean Baudrillard, isso certamente teria sido um grande problema. Mas para quem entra no Twitter, é quase um questão de honra (e praticamente um prazer) ser um dos escolhidos para figurar em uma dessas listas.

O Twitter, aliás, é o lugar de muitos começos. Ou talvez seja o lugar de um único e longo começo. O Longo Agora que Stewart Brand e Danny Hillis preconizaram.

13. Uma das funções das redes sociais é fazer com que pessoas se exibam e vejam outras se exibindo.

What are your interests?, é o novo (hoje, em outubro de 2011, momento fixo no tempo fluido em que este fragmento está sendo reescrito) slogan que a página de entrada do Twitter anuncia.

Faz sentido: a mudança de paradigma anunciada por Michael Hardt e Antonio Negri em seu livro Império – que implica na alteração do conceito de sociedade de vigilância analisada por Foucault nas décadas de 1960 e 1970 para a noção de sociedade de controle – é importante para entendermos a questão da observação do povo pelo governo (ou pelos que detêm algum poder, não necessariamente um cargo político), mas não faz diferença no âmbito tecnológico. A tecnologia (se entendermos aqui o uso de instrumentos e ferramentas feitos pelo homem, sejam eles mecânicos ou elétricos, ou eletrônicos) está sempre ocupando um papel de destaque nesse cenário.

E a palavra destaque é grande ironia: não há nada mais inconspícuo e invisível atualmente do que uma câmera. Quando escreveu 1984, em 1948, George Orwell ainda vivia em um tempo em que se tinha horror à vigilância do povo pelo governo. Duas décadas antes, em Tempos Modernos, Charles Chaplin já previa isso, com a imagem do dono da fábrica aparecendo em telões imensos até no banheiro, onde o empregado cansado não pode nem fumar um cigarro escondido por alguns minutos sem ser descoberto e advertido pelo telão – influência de Chaplin na criação da teletela de Orwell?

Sim e não – os videofones estavam sendo pesquisados em paralelo com a televisão, e o único motivo pelo qual a RCA nunca chegou a produzir em massa o protótipo que apresentou na Feira Mundial de Nova York no começo da década de 1950 foi o fator humano: a maioria dos entrevistados achou o aparelho ótimo – mas não o teria em casa, porque não gostaria que estranhos os vissem na intimidade do lar, com cara de quem acabou de acordar ou sair do chuveiro. Outros tempos, outros modos de pensar.

14. Esse ver-e-ser-visto é um comportamento humano. Não é uma característica do mundo digital. Qualquer rave, qualquer vernissage, qualquer Fashion Week é a mesma coisa. Isso somos nós.

A câmera e seu olhar sempre foram muito exploradas pelo cinema – e, particularmente até o final do século passado, não raro de maneira negativa, com subtons de terror, metaforizando o complexo de Frankenstein, onde a criatura se volta contra o criador.

Como, por exemplo, em 2001 – Uma Odisséia no Espaço, quando o olhar vermelho e ciclópico de HAL (o olhar da câmera) nos é mostrado constantemente em contraponto aos astronautas humanos, é para nos lembrar que, como no poema de Blake, ali há tigres – a vigilância é constante, e ninguém está livre dela.

Mas isso foi em 1968, ano do AI-5 no Brasil, ano das barricadas de Paris. Nessa época, Michel Foucault já havia escrito O Nascimento da Clínica e começava a investigar o uso da tecnologia na vigilância, desde o Panopticon de Jeremy Bentham, projetado no século dezoito, até as prisões-modelo do século vinte, o que levaria ao clássico Vigiar e Punir, em 1975.

Outro filme, pouco lembrado no Brasil mas igualmente importante, é A Morte ao Vivo, de Bertrand Tavernier. Baseado no livro The Continuous Death of Katherine Mortenhoe, de D. G. Compton, de 1974, o filme tem Harvey Keitel e Romy Schneider no elenco. Keitel é um jornalista que possui implantes de gravação nos olhos, que passam a atuar como câmeras. Ele é designado para acompanhar os últimos dias de vida da última pessoa (a tal Katherine Mortenhoe) a morrer de doença numa Terra do futuro em que as pessoas são virtualmente imortais. E esses imortais têm muita curiosidade em saber como uma vida termina. A ponto de não ter o menor escrúpulo em acompanhá-la vinte e quatro horas por dia, filmá-la ao vivo em seus momentos mais íntimos.

Um detalhe curioso: o filme é de 1980, vinte anos antes da febre dos reality shows como Big Brother – talvez uma das maiores ressignificações semânticas/mudanças de paradigma das últimas décadas. Aquele que vigiava antes agora é bem-vindo para olhar à vontade.

A câmera agora somos nós. HAL é coisa do passado, bem como 2001. A sociedade do controle agora está mais para Admirável Mundo Novo do que para 1984. Talvez queiramos ser vigiados. Apenas não nos damos conta disso – ou, o que pode ser pior, talvez percebamos. Mas isso já não nos incomoda.

O que não significa que a vigilância não continue sendo usada pelo poder, em todas as suas formas. O que acontece quando damos os nossos dados às empresas de mecanismos de busca da Web, como o Google? O que fazemos quando criamos perfis descrevendo nossa vida íntima no Orkut? Se por um lado essas ferramentas de busca ou redes sociais constituíram um grande avanço nas relações humanas nos últimos anos, por outro abrimos a porta de nossa casa para uma pletora de situações – desde spams oferecendo toda sorte de produtos até ligações vindas de presídios exigindo dinheiro e ameaçando a vida do usuário, contando detalhes de seu cotidiano para provar que ele está sendo vigiado. E nem começamos a falar daquelas comunidades do tipo “Eu Odeio as Segundas-Feiras”; se você faz parte de uma delas, cuidado na hora de se candidatar para um emprego. O mesmo ocorre no Twitter, onde você pode ser seguido por um empregador em potencial.

E a pergunta de Juvenal, Quis custodiet ipsos custodes? (quem vigia os vigilantes, usada inteligentemente por Alan Moore em sua graphic novel premiada Watchmen), continuará a ser feita. Sem resposta.

15. Gostamos de viver na multidão, mas fazemos questão de ser sozinhos nessa multidão. Somos espumas flutuantes, para citar Castro Alves numa recombinação com o pensamento filosófico de Peter Sloterdijk.

Andamos nas ruas das cidades, mas isso não significa que gostemos de conversar com as pessoas que partilham a calçada conosco. Gostamos, sim, de olhar as vitrines, de parar para tomar um café, saber o que passa nos cinemas, ocasionalmente parar numa esquina e esperar um amigo. Certamente conversar num celular ou ouvir música num MP3 player enquanto andamos, o que já é mais regra que exceção nas grandes cidades. Flutuamos, flanamos – mais flutuamos sem perceber do que flanamos, na verdade. Somos espumas no sentido de que muitas vezes fazemos coisas pelo mundo sem pensar, numa espécie de movimento browniano regido por alguma lei da Física que ainda nos escapa. O Twitter também estará regido de algum modo por essa lei?

16. No Twitter, a questão não é tanto a relação quanto a transmissão.

O Número de Dunbar diz que uma pessoa não pode ter mais de 150 amigos em média. Mas por que a insistência no termo “amigos” como algo pertencente ao século 19? Os amigos virtuais não são necessariamente amigos que você verá algum dia em mesa de bar – e isso é ruim? Sou tão amigo de Maria Popova (@brainpicker), búlgara residente em Nova York a quem nunca vi na vida quanto de Gabriel (@Gabbf), meu sobrinho, a quem vejo regularmente. Ambos têm uma relação comigo – mas, enquanto Gabriel tem uma relação consangüínea, Maria me transmite informação, e esta é uma das coisas que procuro no Twitter.

17. Logo, o Número de Dunbar (ao menos para o Twitter) estaria errado.

É uma proposta ousada – mas que me atrevo a fazer aqui. Já é possível, em cinco anos de Twitter (no momento em que este texto está sendo escrito), mensurar e tirar uma média de um número de amigos com os quais nos relacionamos o tempo todo?

É possível se mudarmos o conceito de amigo. Sabendo que amigos virtuais (já sabemos disso há muito tempo, na verdade) não são necessariamente pessoas que veremos pessoalmente algum dia em nossa vida (e isto é ruim?) mas sim pessoas com quem compartilhamos momentos, instantâneos da nossa vida, fragmentos de uma timeline compostos de emoções e/ou informações, a ideia de amizade defendida por Dunbar cai por terra.

Na medida em que uma pessoa ativa no Twitter, que se comunica e troca dados com gente do mundo inteiro, ao longo de vinte e quatro horas (dormir aqui não é levado em consideração, porque cada um de nós escolhe a hora em que dorme – há quem durma de dia, há quem durma de noite, e não nos esqueçamos dos insones), poderíamos propor triplicar o número de Dunbar: 450 amigos – 150 para manhã, 150 para a tarde e 150 para a noite. Parece muito? Será?

18. Não existe página em branco no Twitter.

O Twitter só existe como coisa-em-si. Em branco, ele não realiza seu potencial. Sem “twittings”, sem chilreares nessas árvores digitais, o Twitter não faz sentido. Lembre-se do koan zen: quando uma árvore cai no meio da floresta e não há ninguém lá, ela faz barulho?

A comunicação só faz barulho (não vamos confundir com ruído) quando existe alguém que o ouça. Só ouvidos podem compreender e rotular o som. Sem receptores a emissão não faz sentido.

19. Por outra: não existe perfil ativo no Twitter com página em branco, sem sua própria configuração de perfis que segue.

Cada página do Twitter é única, como uma impressão digital, ou (sejamos pós-modernos) um exame de DNA. Não existe página igual, e é isso o que torna os diálogos tão ricos e interessantes. O entrecruzamento de informações e as pontas soltas de um grande novelo de lã (outra metáfora que, se não é perfeita, também não é inexata para o Twitter).

20. Como o rio de Heráclito, não só uma pessoa não se banha duas vezes no mesmo fluxo de rio, mas nenhuma pessoa se banha no mesmo rio.

A timeline não é estática. Ela avança no tempo, como seu nome diz. A cada segundo, diversas pessoas (dezenas ou centenas, dependendo de quantas vocês segue) se acotovelam no espaço vertical da linha do tempo da sua página, exigindo sua atenção. E você que a dê, senão para quê estar ali? Bem-vindo ao Rio de Heráclito – só que esse rio se encontra na Interzone de William Burroughs, onde, devido ao grande calor da Tânger-irreal de sua memória, repleta de agentes alienígenas, tomava-se banho a todo instante e se vivia com água corrente no corpo. É um rio que passa em sua vida. Sempre.

21. Não existe uma página de Twitter igual a outra. Um perfil de Twitter não acompanha as mesmas pessoas, logo não está sujeito às mesmas mensagens e ao mesmo fluxo.

Cada pessoa acompanha um grupo de outras pessoas, que por sua vez acompanham grupos de outras pessoas, e assim por diante. A lógica, matemática, perfeita, é serena e tranqüila. As mensagens não. Por isso esse fluxo desenfreado, essa coisa que enlouqueceria Baudrillard e certamente mantém Virilio à distância. Na verdade são muitos rios de Heráclito. O Twitter é toda uma Bacia Hidrográfica de Heráclito.

22. Logo, podemos concluir: não existe apenas um twitter. Existem twitters, no plural. Seguimos em paralelo, como estações de rádio num dial, para usar uma metáfora mais antiga, ou URLs na Web, se quisermos acompanhar os novos tempos e as novas mídias.

Nunca foi tão pertinente recuperar a metáfora do rádio. Ainda que visual, o Twitter oferece menos distrações de caráter imagético (descontados os links para twitpics) e mais a sedução pela palavra. Se algum teórico dos primórdios da Internet achava que ela seria o fim da palavra, o Twitter se encarregou de demolir em definitivo esse preconceito. A criação de todas essas “rádios-piratas” que até que são bem comportadas (justamente porque não proibidas) liberou seus usuários-transmissores para o sonho de Bertolt Brecht – que o rádio pudesse ser uma via de mão dupla, onde todos transmitissem para todos. Esse dia chegou.

23. Retomando a metáfora de “modernidade espumante” de Sloterdijk: vivemos em bolhas transparentes de espaço-tempo onde é confortável saber que não estamos sós – mas que não nos peçam para participar de nada.

O Twitter não é um ambiente asséptico, nem a Web é um ambiente repleto de cepas de H1N1. Consumamos esses nossos eternos monólogos disseminando nossas mensagens no ar para quem quiser ouvir – e muitos ouvem. E os consomem, inclusive se valendo de outro recurso, o Retweet (RT), que permite que reproduzam (citando a fonte, como pede a netiqueta) os dados. Ora reduzindo-os para acrescentar suas próprias opiniões (com pouquíssimos caracteres, e ainda por cima separados por marcações bem definidas, como //), ora simplesmente colocando a sigla RT antes do endereço de twitter da pessoa e deixando que a informação se propague sozinha. Um vírus, um meme? Não: um retweet. Simples – e asséptico (pois você não tocou na informação, que nem era sua para começo de conversa).

24. Um dos motivos prováveis da permanência dos usuários no Twitter é sua, poderíamos dizer, “an-MSNidade”, e nele só permanece quem tem algo a dizer além de “e aí blz?”

Não podemos dizer que agora a ansiedade de informação está sendo substituída por (ou corre em paralelo com) outro tipo de angústia, a ansiedade da resposta? E em alguns casos específicos, a ansiedade do retwitting?

25. Mas o que se tem a dizer no Twitter?

Talvez a melhor pergunta a se fazer seja: o que não se tem a se dizer no Twitter? Existe algo que não possa ou não deva ser dito no Twitter?

EIS A QUESTÃO.

26. Pode-se dizer o que se quiser no Twitter, sem restrição de tema. Pode-se até mesmo optar por nada dizer.

@twittgenstein e @alletsator não se conhecem mas propõem projetos quase idênticos: transmitir, tuitar, em dropes, em tweets, fragmentos da obra de Wittgenstein. (Curiosamente, ambos os tweets, no momento em que termino este livro, já não estão ativos há meses – o que não quer dizer que não venham a ser reativados em algum ponto futuro. O processo independe de algum marcador específico.)

27. As hashtags do Twitter, assim como as coisas que são ditas antes delas, podem ser subvertidas para não significarem nada #beijonaomeliga

A hashtag não foi inventada no Twitter, mas no IRC (Internet Relay Chat), onde cumpria uma função bem específica de categorizar um tema de conversação. Embora tenha sido usada no Twitter com a mesma finalidade no começo, e ainda o seja, ela é usada com muito mais liberalidade por seus usuários, que não se aferram a nenhum manual de boas maneiras ou de melhores práticas. As melhores práticas do Twitter são aquelas que seus usuários inventam para si mesmos o tempo inteiro, de acordo com seus desejos, necessidades e vontades (geralmente mais por desejos mesmo que por qualquer outra coisa).

28. Por outro lado, o Twitter também pode ser usado como uma versão do MSN.

As DMs (recurso que significa Direct Message, ou mensagem direta, algo que só pode ser trocado entre dois usuários específicos e visto somente por eles também) perfazem essa substituição. É o mecanismo de articulação de Pierre Lévy, onde, novamente seguindo a filosofia de Gibson de que a rua (a rua aqui sendo a antiga “auto-estrada da informação”, a atual Web, que está ficando cada vez mais fragmentada, móvel, móbile, mobile graças aos dispositivos móveis. McLuhan nunca esteve tão certo: o meio é a mensagem = a forma é a função = a metáfora é o código.

29. O Twitter também pode ser usado apenas para seu propósito original, ou seja, dizer a quem segue você o que você está fazendo naquele determinado momento.

Você pode simplesmente dizer que está indo comprar pão na padaria – mas também pode avisar que está chovendo na sua cidade. Quando aconteceu o terremoto de 2005 em São Paulo, os primeiros a detectar foram os habitantes do Twitter – fato que não escapou à atenção de um jornalista da TV, que prontamente entrevistou uma delas, e publicou os dados em seu blog. Por que motivo ele não fez isso na TV, não sabemos. Talvez porque a TV já não seja rápida o bastante.

30. Na verdade, o Twitter pode ser usado para quase tudo o que se queira em termos de funções da comunicação (Roman Jakobson).

Na verdade o Twitter é um grande outdoor das funções da comunicação de Jakobson, a saber: fática, poética, emotiva, conativa, referencial e metalinguistica. O que os criadores do Twitter projetaram como uma ferramenta comunicacional fática rapidamente se transformou num leque contendo as demais funções. Usuários descrevem fatos, cometem poemas, brincam com a própria ferramenta, enchem sua timeline de expletivos, interjeições e comentários para si mesmos e jogam com referências, não só pelo uso continuado de links, mas principalmente com brincadeiras que se transformam em poderosos memes e se alastram pelo Twitter (por exemplo, a série #digitealgodesuainfância, que suscitou lembranças de infâncias de várias épocas inteiramente diferentes e não necessariamente relacionadas). Uma característica desses memes é sua duração extremamente curta: a maioria não dura mais que um ou dois dias. Poucos conseguem chegar a uma semana. (O exemplo do momento em que digito este texto é #CALAABOCAGALVÃO, uma homenagem ao locutor de futebol Galvão Bueno e seus “palpites infelizes” durante a Copa do Mundo da África do Sul).

31. O Twitter é uma ferramenta muito mais adequada a dispositivos móveis do que a desktops, pois pode-se fazer muito mais coisas em movimento do que parado (ainda que você possa fazer um número grande de coisas em um desktop).

A quantidade grande de apps (aplicativos) criados para o Twitter a cada dia talvez esteja mais ligada ao fato de que ele seja bastante utilizado em dispositivos móveis (smartphones). Um dos principais usos coletivos do Twitter atualmente é a transmissão em tempo real de palestras e congressos através tanto dos organizadores do evento quanto dos participantes na platéia. Este é o real advento da smart mob preconizada por Howard Rheingold em seu livro homônimo.

32. Some-se a isso a dificuldade que muita gente tem hoje em dia de atualizar seus blogs com freqüência, seja por preguiça ou por falta de tempo.

O Twitter é uma ferramenta de microblogging, o que veio bem a calhar para quem prefere eficiência medida por tamanho. Para quem também não dispõe de tempo (every year is getting shorter, já dizia Roger Waters, e essa canção tem mais de quarenta anos – a percepção de tempo não está ficando mais elástica), é mais fácil e prático tuitar da rua. Vertov fez Um Homem com uma Câmera? Hoje temos Mil Homens/Mulheres/Transgêneros com um Dispositivo Móvel. E há enormes chances de que novecentos ou mais possuam um aplicativo para Twitter nesse dispositivo móvel.

33. O Twitter não requer que seu usuário tenha conhecimento empírico de código algum, ou seja, não precisa entrar em publicadores como Blogspot, WordPress ou Movable Type.

O Twitter é uma experiência sensorial imersiva completa em si mesma. Basta que o usuário insira dados básicos como nome (que pode ser falso – afinal, o que é a identidade hoje?), conta de e-mail e uma senha – e seu endereço de Twitter já foi criado. Nada mais é necessário, nem mesmo colocar uma foto se ele não quiser. O interessante, inclusive, é a possibilidade de se trocar de foto (ou avatar) a todo instante, acrescentando também twibbons (ribbons, ou fitinhas virtuais, de twitter), para comemorar esta ou aquela data específica e embelezar sua imagem. Não requer prática e tampouco habilidade.

34. Twitter é fragmento.

Aliás, esta é sua delícia e sua dor: como há menos de duas décadas os sysadmins (administradores de sistemas) costumavam dizer, de modo nem um pouco educada para os não-iniciados que os procuravam com problemas em seus servidores ou computadores mais simples, READ THE FUCKING MANUAL – leia o maldito manual, amaciando um pouco a tradução. Da mesma forma, hoje poderíamos dizer, em analogia, READ THE FUCKING TIMELINE, pois se o Twitter tivesse sido criado nos anos 1930, seria certamente um bonde, em que as pessoas sobem e descem no meio do caminho. O Twitter é um riocorrente, um riverrun (James Joyce) onde tudo o que nele passa é barco, barca – ou, infelizmente, às vezes destroço, escombro, escolho. Mas tudo passa.

35. O Twitter é fractal. É o Aleph borgiano.

Assim como a partícula elementar descrita no conto de Borges, através da qual era possível visualizar todo o universo, o Twitter, através desse rio é possível saber o que está acontecendo no mundo de modo tão ou mais eficiente do que se você estivesse zapeando por diversos canais de uma TV a cabo. Só que você está vendo uma única página de Web. O Twitter é a parte que permite ver o todo.

36. Para entender o Twitter, basta entender um fragmento do Twitter.

O Twitter é cada um de seus usuários, e também a soma deles. Para entendê-lo, basta estar ali. Basta ler uma unidade básica, ou seja, um tweet. (é claro que um tweet quase sempre leva a outro, se desdobrando e transformando a unidade básica numa cadeia de elementos ou, se quisermos, num origami interligado a outros origamis, interminavelmente.)

37. Para entender o Twitter, basta entender um daqueles que Twittam.

Pode parecer contraditório, mas que rede social não abriga contradições? “Do I contradict myself? Very well, then I contradict myself, I am large, I contain multitudes.” Contenho multidões, disse Walt Whitman, o poeta das folhas de relva. Se o Twitter tivesse sido inventado em sua época, cada tweet seria uma folha de relva, mas o campo seria bem mais rico e nem um pouco homogêneo. Seria contraditório e ao mesmo tempo fácil de entender, como todo ser humano. O Twitter é uma multidão que contém multidões.

38. Conhece-ti a ti mesmo; twitta-te a ti mesmo.

O Twitter pode não ser um divã de analista, mas em sua interface seus usuários desfiam um rosário de sonhos, pesadelos, confissões, reclamações, ditados, mandos, desmandos, ponderações, debates, círculos filosóficos – e tudo começa quando o usuário escreve uma simples frase. Seja qual for a função dessa frase – de um fato a um poema – ele comunica algo que ou chamará a atenção a alguém, e o fará ser listado ou chamado a um diálogo, ou simplesmente reler sua própria frase e repensá-la, se recontextualizando.

39. O Twitter é oracular.

O Twitter é uma poderosa ferramenta de autoconhecimento. O Twitter talvez seja hoje o que o I Ching foi durante séculos para os povos do Oriente e, nas últimas décadas, para os ocidentais: um oráculo, um auxílio meio espiritual, meio psicológico para as dúvidas e dilemas do cotidiano. Só que, enquanto Jung analisou o I Ching como sendo uma resposta do próprio inconsciente coletivo ao lance de moedas ou varetas de milefólio, o Twitter é a vingança de William Gibson e dos cyberpunks: não há inconsciente coletivo nessa história. O que acontece é à vista de todos, é um grande consciente coletivo, onde todo mundo vê, pergunta, opina, pensa (ou não) e conclui, com senso ou sem senso.

40. O Twitter é subversivo. 

O caso das eleições do Irã foi a prova (se alguém ainda queria alguma) de que as redes sociais, e em particular o Twitter) podiam fazer a diferença – ou morrer tentando. A morte da jovem Neda Soltani foi gravada em vídeo por um celular e transmitida pelo mundo todo via links em redes sociais, com destaque para o Twitter. A hashtag #iranelections foi uma das que tiveram mais vida útil no Twitter, tendo durado meses em seus Trending Topics. Em protesto pelos tumultos, milhares de usuários cobriram seus avatares de verde-claro – a cor do Islã e da bandeira do Irã. A subversão hoje é rápida.

41. O Twitter é o Little Brother (Cory Doctorow).

A função política do Twitter não se esgotou nas eleições iranianas: em 2011, a chamada Primavera Árabe já mobilizava cidadãos na Tunísia, Iêmen, Egito, Líbia e outros países do Oriente Médio e Norte da África por intermédio, entre outras ferramentas, do Twitter como ponte para encontros nas praças de seus países a fim de exigir mudanças e lutar por elas. Para combater a vigilância do Grande Irmão que é o Estado, a rede de Pequenos Irmãos que se unem em função de uma causa. A luta continua – também entre nós, pós-humanos.

42. O Twitter é polis.

Se política vem de polis, é evidente que o Twitter é uma grande cidade. Uma cidade sem fronteiras definidas. Fisicamente existem servidores, e computadores em todas as partes do mundo. É pós-geográfico, é transgeográfico, e isto basta. O Twitter é a mais perfeita tradução do ciberespaço, e conseguiu aquilo que nem o Second Life, com sua tentativa literal demais de imitação da vida, tentou: ser não uma megalópole, mas uma transpólis ou, melhor ainda uma Metápole – uma cidade além de toda e qualquer fronteira.

43. O Twitter é pós-geográfico. (William Gibson)

O Twitter é um não-lugar, para usarmos o termo proposto por Marc Augé. Ele é o não-lugar de todos os não-lugares, pois é a Web em sua forma mais liquida, a modernidade em sua forma mais transitória, o ponto nodal onde todos nós nos cruzamos no caminho para uma possível pós-humanidade.

Talvez mais do que um não-lugar, o Twitter já possa se configurar como um pós-lugar, na medida em que ele é a ponta de um iceberg, ou a ponta de um fractal de inúmeras pontas, e que sempre nos levam a outros lugares por intermédio dos membros da nossa timeline.

44. O Twitter é pós-humano.

Talvez o Twitter seja efetivamente a primeira rede social a se valer de um vocabulário que aponta para uma nova linguagem, que habita no novo horizonte do ser. É o pensamento Heideggeriano de Ser e Tempo no século vinte e um: quem é o ser, e quem o ente de hoje? É este múltiplo que começa a se reproduzir de maneira rizomática pelo território que é o mapa, criando uma nova linguagem à medida que por ele navega.

45. O Twitter é pós-linguagem.

Um pós-humano requer uma pós-linguagem. O Twitter fornece aos seus usuários (e será que ainda podemos chamá-los assim, com essa frieza?) uma possibilidade que não lhe pertence originalmente: o exercício de 140 caracteres, na verdade uma limitação imposta pelo máximo espaço possível dos SMS, remete aquele que tuita ao recurso estético-comunicacional do haikai, do código Morse, do sinal de fumaça, do pictograma. Existem uma linguagem textual e uma linguagem gráfica (Twittergrafia) novas no Twitter. Não se é pós-humano impunemente.

46. O Twitter é uma rede metastática.

O Twitter se reproduz quase que sozinho. Seja através de bots que procuram você por causa de palavras específicas ou por indicações de amigos ou de amigos dos amigos, o Twitter nunca se mantém o mesmo. Todos os dias sua configuração muda por completo. Até mesmo quando um usuário o abandona, pois logo diversos seguidores o abandonam também, sentindo que ele não tuita mais. Se o Twitter é uma metástase, ele não tem cura, pois, uma vez tocado por suas bordas e seus nós, nunca mais voltamos a ser os mesmos, ainda que o deixemos. Ainda que (o que certamente acontecerá no futuro) ele nos deixe.

47. O Twitter é uma linha cruzada de propósito.

Um emaranhamento numa linha reta; uma linha trançada, um trance, um transe do qual não se quer sair. Estão sendo criadas políticas inteiras de RT, ou seja Retweet, repetir o tweet alheio, com ou sem permissão. A disseminação é o que importa. Ainda que isso gere um excesso para alguns, um flood, como se diz no jargão.

48. O flood, aliás, é algo que foi criado em listas de discussão por e-mail mas que só existe em todo o seu esplendor no Twitter: o (nada) bom e velho dilúvio, com nome em inglês, que significa inundação de dados numa timeline.

As pessoas reclamam de algo que elas mesmas podem alterar com poucos cliques no mouse: excesso de informações na página. A página contém os tweets postados por todas as pessoas que elas seguem. Há uma opção: não seguir. Mas é mesmo uma opção? Se não seguirmos, o que faremos? Ficaremos sozinhos?

49. O Unfollow não é uma escolha.

Unfollow é uma das palavras mais famosas no ambiente do Twitter: significa não seguir, deixar de seguir alguém. Mas terrível do que nunca ter seguido alguém é deixar de seguir esse alguém. (até porque existem hoje em dia bots, robozinhos que avisam às pessoas quando alguém deixou de segui-las: os mais carentes de atenção ou narcisistas usam esses bots e podem se vingar de você se descobrirem que você não os segue mais – a vingança é um prato que se come a qualquer temperatura). O que fazer? Decisões, decisões.

50. O Block é uma escolha.

A palavra mais temida no ambiente do Twitter é o block. Bloquear uma pessoa pode equivaler a uma declaração de guerra. Se você recebe um aviso de que alguém está seguindo você e essa pessoa é desconhecida (e você tem a suspeita de que pode ser um bot, uma empresa fazendo SPAM, por exemplo), é legítimo bloquear essa pessoa. Mas se você conhece pessoalmente essa pessoa, bloqueá-la pode ser desagradável.

51. O Twitter é composto de escolhas.

O twitter é sua família de escolha – é a tribo do sec XXI. Somos todos tribos, apenas não nos damos conta disso. A escolha pode ser consciente (punk, rocker, skatista, fashionista) ou inconsciente de uma certa forma, como o pertencimento a um círculo profissional altamente especializado (um advogado ou um engenheiro pode não se considerar necessariamente membro de uma tribo, embora seus trajes e gestos o traiam).

52. O Twitter reconfigura você.

Ele altera a forma como você usa a Web. Quem usa o Twitter não consegue mais se relacionar com a Internet da mesma maneira. O usuário começa a compartimentar sua mente de modo mais ativo e dividir seu tempo mais rapidamente entre funções – exatamente como faz para dividir seu tempo entre os usuários que exigem seu tempo com tanta carência. O usuário atento do Twitter sai de suas águas no caminho da pós-humanidade: reconfigurado para um novo estatuto do ser, mais preparado para lidar com a dromosfera viriliana, a velocidade que hoje, longe de ser excessiva, é o nosso padrão de normalidade (vide Canguilhem).

53. O Twitter é o fim do silêncio.

Na verdade, o silêncio nunca existiu, e o século vinte e um apenas comprova isso de forma mais aguda: nas grandes metrópoles, a moda agora é sair pela rua com a função MP3 player do celular a todo volume, sem fone de ouvido. Não existe mais espaço privado, não existe mais bolha de espaço pessoal (se é que de fato isso um dia existiu, e não foi apenas uma ilusão social, um construto social).

Mas o Twitter não é para quem gosta de solidão. Você pode optar por não falar. Mas não pode optar por não ouvir. O Twitter é a fronteira final do silêncio. Ali esse outro construto social e psicofísico se acaba. E será que algum dia ele foi necessário?

54. O Twitter é o arauto do fim do livro de papel, seu Armagedon.

A pergunta que não quer calar na boca dos que nada entendem é: o livro vai acabar? Ora, o livro está sempre acabando. Tabuinhas cuneiformes, papiros, pergaminhos. Do códex ao pixel, tudo muda. Suporte e conteúdo. Até o leitor muda. Só não muda a nossa insistência no conceito. De mais a mais, como dizia Louis Armstrong, se você precisa perguntar o que é jazz, não vai entender mesmo.

55. O que existirá no futuro após-Twitter?

O Twitter provocará alguma nostalgia em quem o utilizou? Daqui a vinte anos, digamos (supondo-se que este livro dure tanto), se a Web como a conhecermos ainda existir, ele já terá sido substituído por outras redes e sistemas – o que não quer dizer que talvez não surja através de um emulador, para os mais nostálgicos (que provavelmente brincarão com a “novidade” por pouquíssimo tempo e a deixarão de lado). E o fluxo continua.

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[1] Sendo essa pre-sença a tradução dada por Márcia Sá Cavalcante Schuback para dasein, a qual, embora elegante, vem caindo cada vez mais em desuso.