Dois dias atrás, uma convergência fortuita (mesmo que pela via algorítmica) de posts de diferentes mídias sociais me trouxe duas coisas interessantes.
A primeira foi um post no Instagram onde um leitor me tagueou porque tinha acabado de ler minha tradução de LARANJA MECÂNICA e gostado. Mas nunca leia os comentários: a maioria esmagadora deles era de leitores que diziam querer muito ler, mas não conseguiram porque a escrita era muito difícil e/ou densa.
No mesmo dia, o Facebook me traz esse post abaixo, do amigo Steven Shaviro, autor de Doom Patrols e Discognition:
I try really hard to make my own science fiction fandom congruent with fandom more generally. But I come across way too many online reviews of sf texts that complain that the texts are “confusing”, when all they are doing is using a “lite” version of modernist techniques that were already common enough as to have been absorbed into the wider culture a century ago.
Numa tradução apressada:
Eu me esforço muito para fazer com que meu próprio fandom de ficção científica seja congruente com o fandom de forma mais geral. Mas me deparo com muitas resenhas online de textos de FC que reclamam que os textos são “confusos”, quando tudo o que eles estão fazendo é usar uma versão “leve” de técnicas modernistas que já eram comuns o suficiente para serem absorvidas pela cultura mais ampla há um século.
É uma questão com a qual eu venho lutando desde meu mestrado, há mais de vinte anos: como transmitir aos não-leitores de ficção científica os códigos necessários para a leitura e fruição do gênero? Durante um bom tempo defendi a ideia de um cânone justamente para isso, servir de porta de entrada para a ficção científica. Mas a ideia de um cânone é algo que vem do século vinte (que já vai longe, pelo menos cronologicamente) e foi popularizada nos anos 1990 por Harold Bloom. Se não é tão antiga, tem jeito de.
Mas quem precisa de um cânone hoje, em 2023? Os professores ou os alunos? Aqueles que mais precisariam (assim acreditamos) de um cânone não se interessam por ele. O que poderia substituir um cânone? Precisamos substituir um cânone por alguma outra coisa que ainda não sabemos qual seja? E, talvez a pergunta mais importante que não costuma ser feita: com que objetivo? O que nos propomos a mostrar, dentro de um campo tão vasto quanto o número de autoras e autores que nele habita?