Primeiras Observações

No começo a ideia era apenas criar um blog. Iniciar um processo de desintoxicação das mídias sociais que reduzisse a ansiedade e voltasse meu foco para algo mais produtivo. Andamos pensando muito em blogs ultimamente, não só eu mas muitas amigas e amigos nas redes.

Já fui bom em blogs um dia. Em 2000, criei o Lanceiro Livre, para falar de Jornalismo Cultural – mas que, como quase tudo na web, estendeu o alcance para tratar também de outros assuntos, todos de maneira muito pessoal. Depois vieram outros blogs, mas aí a novidade já tinha passado e tudo o que veio depois foi, de certa forma, um simulacro de si mesmo (seria essa a versão século 21 do “contínuo de si mesmo”, de Nelson Rodrigues?).

Mas por volta de 2004, com o Orkut, as mídias sociais começaram a pipocar. E nós fomos na onda. Foi a época da minha defesa de mestrado, durante o qual estudei a obra de William Gibson e a cibercultura como um todo, mas logo depois mergulhar num doutorado sobre Heidegger e o ser do século 21. Mas o doutorado acabou sofrendo um desvio de percurso e virou uma meditação sobre os ciborgues, válida e necessária mas aquém do que eu estava procurando. Ainda vou revisitar esse tema, e este blog é um dos primeiros passos na direção de uma vida mais acadêmica.

Ao longo da pós-graduação, um tema recorrente era: o mundo virtual é bom ou ruim? Com a balança acadêmica pendendo fortemente na direção do ruim. Para muitos, a academia era o santo guerreiro contra o dragão virtual da maldade. Eu discordava, e mergulhei fundo na web para provar que ela não era potencialmente ruim, mas que seu uso a torna problemática. (Elon Musk está aí para confirmar.)

Mas as coisas não são tão simples. Heidegger sustentava que a tecnologia não é de modo algum neutra, mas é criada sempre com um fim específico em mente e esse fim pode ser destrutivo (como as técnicas de destruição dos corpos da Alemanha nazista, à qual Heidegger pertenceu e da qual nunca se desvencilhou totalmente, embora esse pensamento a respeito da tecnologia possivelmente tenha sido uma maneira de rever suas posições na época da II Guerra). Estudar a arquitetura de informação do Twitter e do Facebook pode nos levar a concordar com Heidegger.

Arquitetura, seja física ou virtual, envolve sempre os sentidos de quem a habita. A visão costuma ser o primeiro sentido a sofrer o impacto de uma arquitetura, ainda que não só; é importante evitarmos qualquer atitude capacitista, porque absolutamente tudo deve ser levado em conta na hora de se penetrar num espaço, inclusive as emoções. Apesar dos padrões de cores e da fluidez da interatividade, as mídias sociais têm um caráter brutalista que traz à mente J. G. Ballard e até mesmo H. P. Lovecraft: deste, estranhas geometrias que confundem a mente; daquele, o estranhamento sempre presente e à espreita mesmo naqueles espaços com os quais já estamos acostumados.

O Twitter tem me provocado os instintos mais primitivos, para citar aquele sujeito infame de quem talvez a única coisa que se aproveite seja justamente essa frase que virou meme. Cada minuto no Twitter para mim é um minuto de ódio orwelliano, e 1984 já ficou para trás há quase 40 anos. Já o Facebook me incomoda menos, e me comove a ponto de querer escrever textões, quase sempre semiconfessionais, quase sempre voltados de algum modo para meus amigos (o que não é nada ruim). Mas 2023 está chegando, e depois de um 2022 muito difícil e bastante fora da curva, é importante dedicar um tempo a baixar a pressão (literal e metaforicamente) e escrever mais sobre o que me interessa, seja porque gosto, seja porque me incomoda, sem a pressão das mídias sociais. A ideia, aproveitando a resistível ascensão de Elão, é sair o Twitter no fim do ano. Quanto às outras redes, continuarei mais por uma questão de manter contato com os amigos e divulgar meus trabalhos, de ficção e acadêmicos.

E este blog vai tratar basicamente da parte acadêmica: como acho que a maioria de vocês já sabe, estou iniciando um grupo de pesquisa dedicado à ficção científica na PUC-SP. Ele se chama Observatório do Futuro, e praticamente tudo nos interessa observar pelo viés da literatura (e outras mídias) dita fantástica ou insólita. Alguns dos seus temas relacionados são arquitetura, cidades, cinema, literatura, marxismo, teoria queer, tradução, tecnologia – todos temas que me interessam em particular, e às amigas e amigos do grupo cujas pesquisas se valem dessas áreas do conhecimento.

O nome Prosa do Observatório foi uma escolha natural (orgânica?), porque ao falar de observatório não tive como não lembrar de Julio Cortázar e seu livro Prosa do Observatório. Minha mente é ao mesmo tempo dispersa e hiperfocada; características que, recentemente descobri, são típicas do autismo e da hiperdotação (mais sobre isso no futuro), que me fazem ficar obcecado por temas singulares durante um curto espaço de tempo, e que me levam a abrir janelas e mais janelas do computador (e da mente) em busca de mais informações a respeito do tema de interesse do momento. Foi abrindo janelas que descobri que o primeiro observatório astronômico das Américas foi inaugurado no Brasil em 1640, mais precisamente no Recife de Maurício de Nassau, pelo naturalista alemão Georg Marcgraf. Ele veio para o Brasil em 1638, e em seus dois primeiros anos aqui, realizou três expedições no sertão nordestino, no que seriam hoje os de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Em 1640, constrói um observatório numa torre da residência de Nassau e fica ali fazendo observações astronômicas até 1642. Vai morrer em Angola em 1644, e deixa uma publicação póstuma, fruto não das observações, mas da viagem ao Nordeste, a Historia naturalis brasilieae, que seria utilizada por Lineu para conceber seu conceito de espécie. Recomendo o livro O Observatório no Telhado, do pesquisador Oscar T. Matsuura, o estudo mais completo da trajetória de Marcgraf por aqui.

A breve pausa no texto para falar desse observatório primordial é fruto em parte do meu hiperfoco, que não me impede de recorrer à literatura argentina nem ao período das Invasões Holandesas, pelo contrário; uma coisa leva à outra e a prosa acha seu caminho errante mas que também acerta, e muito.

Ano que vem se completam vinte anos desde o começo do blog K-punk, de Mark Fisher.  Assim como Cortázar, e muitos outros, Fisher é uma inspiração para este blogueiro e pesquisador. Entre as muitas outras, que aos poucos serão comentadas por aqui, estão Ballard e seu discípulo, William Gibson, ambos observadores da realidade cotidiana e investigadores semióticos. Também devo muito a Kathy Acker, por motivos que mais adiante ficarão claros. O importante é que o futuro começa agora. Bem-vindes.

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