A história da ficção científica como gênero de mercado se assemelha em alguns pontos à história do cinema. Embora elas tenham décadas de diferença entre seus pontos de origem – consideramos que o cinema como o conhecemos hoje começa a nascer em 1895 com a exibição pública dos filmes dos irmãos Lumière em Paris, e a FC propriamente dita nasce em 1926 – é possível dizer que uma mídia influenciou a outra, ou no mínimo que o cinema influenciou a ficção cientifica desde antes de ela ter esse nome.
Quando H. G. Wells escreve sua novela científica A Máquina do Tempo, pelo menos sua última versão (que é de 1895, mas a história já havia sido publicada em 1890 numa versão menor, com o título The Chronic Argonauts) aponta uma possível inspiração cinematográfica de Wells para usado para descrever a passagem acelerada do tempo, segundo Adam Roberts:
“Não mais um visionário adormecido ou em transe, uma sacerdotisa em uma caverna ou um santo em uma rocha, seu vidente era um homem no selim de uma espécie de bicicleta, customizada em uma oficina suburbana, parte aparelho de rádio de cristal, parte mecanismo de relógio, parte trilhos de trem com comutação de pontos, parte câmera de cinema [grifos nossos] – a primeira Máquina do Tempo da modernidade.”
Primeiro grifo: sabemos, pela breve descrição acima (bem diferente daquela usada nas adaptações de 1960 e 2002 e também no filme Um Século em 43 Minutos (Time After Time, de Nicholas Meyer), que ela tem um único assento, ou “saddle”, no original – o que poderia ser uma sela de cavalo, mas na verdade é um selim de bicicleta; Wells era um ciclista consumado, ou mais do que isso, um ciclo-ativista avant la lettre, alguém que já defendia o uso de bicicletas muito antes de isso virar moda. em 1895, ele e sua segunda esposa, Jane, se mudaram para Woking, em Surrey, e aprenderam a andar de bicicleta. Wells se apaixonou imediatamente por esse meio de transporte. Em sua autobiografia, ele diz:
“A bicicleta era a coisa mais rápida nas estradas naquela época (…) Ainda não havia automóveis e o ciclista tinha uma nobreza, um senso de aventura magistral, que agora desapareceu completamente dele.’
O período muito breve em Woking seria muito prolífico em termos de produção: ele escreveu nada menos que três livros ali: A Guerra dos Mundos, O Homem Invisível e The Wheels of Chance, este último um romance cômico (e quase autoficcional) sobre um jovem que se apaixona por uma moça durante um longo feriado ciclístico e fantasia uma vida diferente da que leva.
Woking ficaria famosa por ser o primeiro lugar onde os marcianos pousaram em A Guerra dos Mundos. Já a bicicleta seria imortalizada (em parte, ao menos) em A Máquina do Tempo. Embora a máquina não tenha pedais até onde sabemos (seu método de propulsão nunca é explicado, mas ele deixa claro que, de algum modo, os dois cristais que servem de alavanca a máquina não pode funcionar), ela é perfeitamente capaz de avançar ou retroceder na quarta dimensão, explicada pelo Viajante (Wells não dá nome ao protagonista) como sendo o tempo.
Essa abordagem inusitada de Wells levaria a uma das imagens mais fortes do livro, e que seria fielmente adaptada pelas duas versões para o cinema: o momento da viagem para o futuro, em que a paisagem ao redor da máquina começa a acelerar – como um filme em alta rotação.
“A vaga sugestão do laboratório pareceu desaparecer de mim e vi o sol saltando rapidamente pelo céu, saltando a cada minuto, e a cada minuto marcando um dia. Supus que o laboratório tivesse sido destruído e eu tivesse saído para o ar livre.”
e:
“Vi árvores crescendo e mudando como nuvens de vapor, ora marrons, ora verdes; eles cresceram, se espalharam, estremeceram e faleceram. Vi edifícios enormes erguerem-se, fracos e claros, e passarem como sonhos. Toda a superfície da terra parecia mudada – derretendo e fluindo diante dos meus olhos.”
Embora isso não seja mencionado na biografia de Adam Roberts, essa descrição faz sentido se imaginarmos que em algum momento daquele ano Wells teve contato com o cinema, através dos primeiros filmes dos irmãos Lumière, ou de Georges Meliés. Claro, também podemos imaginar que as imagens que derretem e fluem diante dos olhos do Viajante podem ser atribuídas à sensação que um ciclista tem ao pedalar em alta velocidade; mas não é nem um pouco improvável que o cinema tivesse tido alguma espécie de influência sob Wells.
Bibliografia deste capítulo:
ROBERTS, Adam. H. G. Wells – A Literary Life. Suíça: Palgrave Macmillan, 2019.
WELLS, H. G. The Time Machine. Londres: Penguin Classics, 2007.








