Desaceleracionismo como insurgência – algumas notas

Uma utopia logística é acima de tudo a confiança nos processos.

A ideia de que a viagem é mais importante que o destino.

Não existe destino. O destino é a morte, e ainda não chegamos lá.

O objetivo é justamente a vida.

Como manter a vida?

E mais: como manter a vida num nível de qualidade acima do meramente aceitável?

A logística como interação dentro da rede de atores (Bruno Latour)

Processos conscientes por pessoas conscientes

Mindfulness mais como budismo engajado e menos como sinalização de virtude (Thich Nhat Hahn).

Atenção ao processo.

Confie no processo mas verifique.

Confie em você.

Confie na rede de atores.

A atenção ao processo requer atenção às etapas.

Cada etapa é fundamental.

O menor passo leva você a algum lugar.

A velocidade nem sempre é o elemento mais importante da equação.

Desacelerar pode (pode?) ser revolucionário.

Desde que não prejudique você.

Desde que não prejudique os outros ao seu redor na rede.

Desacelerar no mundo de hoje requer uma estratégia.

Uma estratégia requer etapas.

Novamente: atenção às etapas.

Frear bruscamente pode fazer o carro capotar.

Não delete todos os apps.

Mas delete o que for possível.

O lema dos lobinhos é O Melhor Possível.

Muitas vezes o melhor possível é realmente o melhor.

Buscar a perfeição é interessante, mas talvez não seja sempre saudável.

Busque o saudável.

Busque a vida.

Soft closing

Existe um termo assim que seja o antônimo de soft opening? Se não existe, invento agora. Ando pensando muito em como sair das redes sociais, o que sempre me frustra porque, bem ou mal (mais mal do que bem) preciso das redes para divulgar meu trabalho. A questão é que mesmo com as redes, a presença digital de quem não é uma celebridade é muito pequena. Passamos despercebidos o tempo quase todo por conta das manipulações do algoritmo.

Desde o ano passado venho experimentando diferentes estratégias para ficar menos tempo nas redes. A única que tem funcionado com alguma eficácia é deletar os apps do celular. Eu já tinha feito isso com o Bluesky no ano passado (e nunca mais voltei a postar lá), e agora fiz com o Threads (do qual entro e saio desde o começo do ano) e com o Facebook (que uso com uma certa frequência mas que nos últimos meses tem sido frustrante porque quase ninguém tem visto meus posts). Ainda tenho o Instagram e provavelmente sempre terei porque administro a conta do curso de jornalismo da PUC-SP, que estou coordenando no momento, mas devo reduzir o tempo empregado na minha conta pessoal, postando apenas quando tiver novidades na área de publicações.

Além do trabalho na universidade, tenho me dedicado mais e mais à pesquisa científica, com foco no conceito de utopias logísticas, que será o tema da minha comunicação no XVIII Simpósio Nacional da ABCiber 2025. (Utopia Logística e o Capitalismo Algorítmico: : Notas sobre Infraestrutura, Aceleração e Cibercultura no Antropoceno é o título. Assim que souber mais detalhes sobre a apresentação, aviso.) E também a literatura: devo lançar um romance no fim do ano e estou me preparando para escrever o próximo.

Para isso eu preciso de tempo, concentração e paz de espírito – coisa que as redes sociais não dão. Por isso esse soft closing. Deverei postar bem menos nas redes de agora em diante, mas quando eu postar será algo relevante.

Duas publicações novas

Na bagunça do dia-a-dia, claro que eu deixei novamente de postar textos aqui. Vou retomando aos poucos, mas hoje aproveito uma brechinha nos trabalhos para avisar de duas publicações recentes.

A primeira é um artigo acadêmico que saiu na Revista Comunicação & Sociedade, do PPGCOM da Universidade Metodista de São Paulo. Um outro mundo é possível… e talvez viável: Notas sobre Red Mars, de Kim Stanley Robinson, e sua utopia logística trata, claro, do que está no título, com ênfase nos trabalhos de Tom LeClair sobre romances de sistemas. Nesse texto eu defendo que Red Mars é um romance de sistemas tanto quanto O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon, usando a estratégia narrativa do metálogo, de Gregory Bateson, para explicar essa estrutura.

A segunda é na verdade uma terceira: a terceira edição do meu livro De A a Z: coisas que você deveria saber antes de escrever seu livro, já está na Amazon Kindle. A primeira edição foi lançada em 2018 também no Kindle, mas logo em seguida Toni Moraes, da editora Monomito, se interessou e propôs publicar em edição impressa. Essa segunda edição ficou linda, e circulou durante a pandemia, mas então a editora fechou as portas e o livro ficou no limbo por cerca de três anos. Esse hiato foi bom de certa forma, porque reescrevi os verbetes e praticamente dobrei o número de páginas do livro. Essa edição, portanto, é bem diferente das duas anteriores. Se você já tem, vale a pena adquirir. E se ainda não tem, agora é a hora.

a volta da lista: filmes vistos em fevereiro/2025

Demorei, mas eu estava ocupado trabalhando – e vendo filmes. Quero ver se posto nos próximos dias as relações de filmes assistidos até julho deste ano. Retomando os trabalhos com os 21 filmes vistos em fevereiro:

Casamentos Cruzados – Nicholas Stoler
Sherlock Jr. – Buster Keaton
The Untold Story of Mary Poppins – sem informações
It All Came True – Lewis Seiler
San Quentin – Lloyd Bacon
Saving Mr. Banks – John Lee Hancock
Queer – Luca Guadagnino
King of the Underworld – Lewis Seiler
Vingadores: Guerra Infinita – Anthony e Joe Russo
La Dolce Villa – Mark Waters
Vingadores: Ultimato – Anthony e Joe Russo
You Can’t Get Away With Murder- Lewis Seiler
The League of Gentlemen – Basil Dearden
Nessuno mi poi giudicare- Massimilianno Bruno
Saturday Night – Jason Reitman
The Suspicions of Mr. Whicher: The Murder at Road Hill House – James Hawes
The Suspicions of Mr. Whicher: The Murder on Angel Lane – Christopher Menaul
Ant-Man and the Wasp: Quantumania – Peyton Reed
The Suspicions of Mr. Whicher: Beyond the Pale – James Hawes, David Blair
The Suspicions of Mr. Whicher: The Ties That Bind – Geoffrey Sax
The Conversation – Francis Ford Coppola

Estatísticas:

Dos 21, revi apenas três, todos da Marvel. Sabe aqueles dias em que você apenas quer ver algo divertido e não pensar demais? Tive alguns desses dias em fevereiro. Todos os demais foram vistos pela primeira vez, com algumas surpresas bem interessantes, entre as quais um festival de filmes noir com Humphrey Bogart logo antes de Casablanca. Nem todos são exatamente bons, mas vale a pena conferir.

Com Patrícia eu vi apenas um: Casamentos Cruzados, com Reese Witherspoon e Will Farrell. Gosto dos dois atores e achei que valeria a pena. Não valeu. O filme começa bem, ainda que com a premissa clichê bem previsível, mas vai ficando muito bobo, e terminou bem abaixo do que poderia ter sido (ou seja, previsível mas divertido).

Idiomas: Praticamente todos em inglês, com a exceção de Nessuno mi poi giudicare, uma comedinha classe-operária italiana com Paola Cortellesi, uma das minhas atrizes preferidas do bel paese, também clichê porém divertida. (O filme de Buster Keaton é mudo, mas é produzido nos EUA e tem intertítulos em inglês, então conta com sendo nesse idioma.)

Filmes de/sobre mulheres: além do filme citado logo acima, temos apenas outros três: Casamentos Cruzados e os dois filmes sobre Mary Poppins e sua criadora, a escritora australiana P. L. Travers. Comecei a ver Mary Poppins, mas preciso confessar uma coisa: nunca consegui terminar esse filme, e não foi desta vez.

Os que mais gostei:

Sherlock Jr – Não sei se é o primeiro filme a trabalhar a metalinguagem da tela de cinema (se bem conheço os soviéticos, provavelmente não), mas é muito divertido, e as soluções encontradas por Keaton são geniais. Para quem não conhece a obra dele, é um bom ponto de entrada. No Criterion Channel.

The Conversation A Conversação é um clássico que eu andava me devendo fazia um bom tempo. Que bom que consegui vê-lo (no Criterion Channel): Gene Hackman num de seus melhores papeis, um homem fechado e paranoico que trabalha com escutas e acaba captando algo que não deveria, o que o coloca num dilema moral. Mas o bom desse filme é que ele foi feito nos anos 1970, com toda uma atmosfera mundo-cão que não tem nada a ver com os atuais filmes de conspiração, onde o mocinho sempre corre, dá tiro, porrada e bomba e acaba salvando o dia. Não é bem assim que a banda toca na vida real, e esse filme é mais vida-real que qualquer outra coisa.

Uma menção honrosa vai para os quatro telefilmes da série britânica Mr. Whicher, estrelados por Paddy Considine. A série é baseada na história real de um dos primeiros detetives particulares do mundo, que saiu da Scotland Yard após um escândalo mas continuou por anos trabalhando solo, e às vezes até em parceria com a Yard, e as histórias, ambientadas na Londres da década de 1860 (período retratado nos livros de Charles Dickens) prendem a atenção. Na Amazon Prime britânica.

Utopias Logísticas – o Marco Zero

Fazendo uma limpeza no meu Dropbox, descobri os apontamentos para uma fala minha num evento da PUC-RS em 2016 – nele, eu lançava as bases de algo que eu estava começando a investigar, o conceito de Utopia Logística. É uma fala um tanto dispersa – tenho o hábito de escrever em bullet points, pequenos parágrafos à maneira das teses wittgensteinianas, que me servem como balizas para desenvolver meu pensamento. Foi mais ou menos o que fiz nesses apontamentos, parte dos quais publico abaixo.

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A comunicação e as visões utópicas da ficção científica recente

. Afinal, a ficção científica prevê o futuro ou ajuda a construí-lo? Como esse gênero literário moldou e ainda molda corações e mentes de leitores, construindo pontes entre realidade e possibilidade. De
Fourier e Saint-Simon, arquitetos de sociedades propostas, a Kim Stanley Robinson, criador de realidades alternativas, quais são os modos de vida, a tecnologia e a comunicação que desejamos?

. Se, como disse William Gibson em Burning Chrome, “a rua encontra suas próprias utilidades para as coisas”, o mesmo se aplica às populações. Sistemas de governo não são orgânicos, mas o desejo o é – e quando aplicado à coletividade, temos um mix que desafia a lógica, porque precisa equilibrar desejo, necessidade, vontade e uma vida possível.

. Chegando daqui a pouco aos 500 anos da Utopia de Thomas More, que na verdade falava de utopos, algo que não está em lugar nenhum (Marc Auge definiu isso bem como não-lugar, mas que possui uma vida diferente, locais intersticiais e de passagem como aeroportos – mas por outro lado temos também o conceito de Zona Autônoma Temporária, de Hakim Bey. Esses conceitos atualizam os falanstérios de Fourier, as propostas socialistas utópicas de Saint-Simon e da Fabian Society invertendo não sua função, mas o papel de seus sujeitos – concedendo-lhes autonomia para gerenciar seus espaços – algo também não muito diferente dos projetos anarquistas italianos do século 19 para 20.

. Dito isso, definimos uma utopia tendo três características básicas, que podem ser assim enunciadas:

. Utopia é arquitetura – tanto física quanto de informação;
. Utopia é engenharia – tanto civil quanto social
. Utopia é logística – organização e distribuição de produtos, serviços e dados

. Muito já foi falado a respeito da arquitetura nos projetos dos utopistas. Da engenharia, um pouco menos – a simples existência de redes sociais como Twitter e Facebook poderia até se encaixar, com uma certa boa vontade, na definição de uma utopia comunicacional para McLuhan e Arthur C. Clarke e seus seguidores, mesmo com o ruído inerente a elas em sua utilização. 

. E menos ainda da logística – o que é um erro de raciocínio, porque uma arquitetura, sendo a criação de um espaço concreto, é constantemente reformada, renegociada com os espaços ao seu redor (tanto os de convivência quanto os vazios). Mas a logística é fluxo.

. Todo projeto utópico é de certa forma um projeto logístico. Uma utopia não se constrói só com boas intenções – todos conhecemos aquele famoso ditado a respeito do inferno. Uma utopia é uma obra política, no sentido de pólis, e uma obra de engenharia, tanto civil quanto social. Como fazer para adequar os fluxos de transporte, alimentação, esgotamento sanitário, os inputs e outputs da comunidade?

. Isso requer uma medida de organização nada orgânica. Organizações utópicas tendem ao controle e à vigilância – e talvez tenha sido por isso que tantas delas nunca saíram do papel, e as que saíram não funcionaram.

. Dentro deste contexto, a ficção científica (seja em sua forma audiovisual ou literária) oferece uma saída para esse dilema, ou tenta. Sempre tentou, em cada época da maneira que podia.

. Na época de Arthur C. Clarke, que vai dos anos 1950 até 1984 (quando ocorre o declínio da FC grandiloquente e o nascimento das distopias cyberpunks, representadas pelo Neuromancer, de William Gibson) ele era considerado um utopista tecnológico, porém um autor religioso ele próprio em sua crença inabalável de que só a tecnologia salva – utopicamente adequando as expectativas das pessoas ao que seria mais lógico e prático.

. A FC de hoje serve como uma imensa tela para a exibição de um imaginário que, mais do que religioso em sua pregação da salvação pela ciência, revela questionamentos e dúvidas na busca por um mundo não mais perfeito, mas não-sufocante, passível de ser vivido e sobrevivido. As mulheres e os homens que habitam esse mundo em sua imensa maioria jamais chegaram à post-scarcity age, a era do fim da escassez de recursos. Eles querem simplesmente encontrar maneiras de reciclar a tudo, inclusive a si mesmos.

. A FC atual atua majoritariamente sobre um paradigma de narrativa procedimental ou procedural.

. Todo escritor de ficção científica é também um pesquisador. Nem sempre acadêmico (Mark Bould e China Miéville, por exemplo, o são, bem como Samuel Delany), mas sim escritores que pertencem a uma categoria o mais próxima possível (talvez à exceção do escritor de narrativas históricas) do acadêmico, ensaísta ou articulista, pois enquanto este constrói uma narrativa de mundo aberta e com referências ao nosso mundo, o outro arquiteta narrativas autocontidas e não necessariamente fechadas.

. Essas janelas para o mundo, que na FC quase sempre se abrem para mundos possíveis, vários deles prováveis, são trabalhadas numa carpintaria literária e de engenharia por autores como Kim Stanley Robinson, autor da trilogia marciana (Red Mars, Green Mars, Blue Mars), 2312 e Aurora.

. Robinson foi criticado recentemente pela revista New Republic como tendo uma prosa “asimoviana”, o que pode ser considerada uma meia-verdade. A narrativa de Isaac Asimov era mais “organizacional” e menos “orgânica” – o caráter dos personagens era por demais bidimensional – não havia a preocupação de lhes conferir humanidade. Só o projeto (leia-se o objetivo final da construção de uma sociedade utópica) importava.

. Porque o gerenciamento de pessoas se confunde facilmente com totalitarismo ou religião – regras ou dogmas que devem ser obedecidos sem questionamento pois uma casta superior (sacerdotes ou engenheiros) sabem o que é melhor.

(a partir daí, os apontamentos se transformam numa escrita meio taquigráfica, com referencias a outros participantes do evento a respeito dos quais, infelizmente, pouco ou nada lembro. Mas este é o primeiro texto que escrevi sobre a relação dos projetos utópicos com o conceito de logística.)

da série: apontamentos para um curso sobre Mark Fisher (I)

Três fragmentos de Shulamith Firestone:

For our analysis we shall define culture in the following way: Culture is
the attempt by man to realize the conceivable in the possible. Man’s
consciousness of himself within his environment distinguishes him
from the lower animals, and turns him into the only animal capable
of culture. This consciousness. his highest faculty, allows him to
project mentally states of being that do not exist at the moment:
Able to constnuct a past and future, he becomes a creature of timea
historian and a prophet. More than this, he can imagine objects and
states of being that have never existed and may never exist in the
real world-he becomes a maker of art. Thus. for example, though
the ancient Greeks did not know how to fly, still they could imagine it.
The myth of Icarus was the formulation in fantasy of their conception
of the state ‘flying’.

These two different responses, the idealistic and the scientific,
do not merely exist simultaneously: there is a dialogue between
the two. The imaginative construction precedes the technological,
though often it does not develop until the technological knowhow is
‘in the air’. For example, the art of science fiction developed, in the
main, only a half-century in advance of, and now coexists with, the
scientific revolution that is transforming it into a reality-for example
(an innocuous one), the moon flight. The phrases ‘way out’, ‘far out’.
‘spaced’, the observation ‘it’s like something out of science fiction’
are common language.

Culture then is the sum of, and the dynamic between. the two
modes through which the mind attempts to transcend the limitations
and contingencies of reality.

In: Robin MacKay e Arvin Avanessian (eds.), #Accelerate# – The Accelerationist Reader (2014)

uma pequena inquietação

Volto aos posts aqui depois de dois meses com algo que tem me inquietado. Estou me preparando para um segundo pós-doc, e uma das coisas que tenho investigado nos últimos tempos, atrelada ao conceito de utopias logísticas, é o romance de sistemas. O conceito, criado por Tom LeClair, faz alusão à teoria dos sistemas do biólogo austríaco Ludwig von Bertalanffy, que estudei no doutorado mas até pouco tempo atrás não havia entrado no meu radar acadêmico. Basicamente, ele envolve a criação de uma trama literária dentro de um cenário com grande nível de complexidade.

Até aí, tudo bem: não faltam livros que se encaixem nessa categoria. Só LeClair de cara já seleciona vários, entre eles O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon, Underworld, de Don DeLillo (um dos favoritos de LeClair) e J.R., de William Gaddis. Todos calhamaços de no mínimo 400 páginas, com narrativas costumeiramente fixadas na história dos EUA, através de uma figura ficcional (que orbita ao redor de várias outras, ficcionais e do mundo real) e se expande para abranger diversas áreas do conhecimento e tentar explicar o mundo em que vive o protagonista.

Ontem tive acesso a um livro recente sobre romances de sistemas, chamado Paper Empires, voltado à obra de Gaddis. E aí me dei conta: ao longo desse tempo que tenho pesquisado o romance de sistemas (pouco mais de um ano), não encontrei um só livro desse tipo escrito por uma mulher. Ontem lancei a pergunta ao éter das mídias sociais e alguns amigos anglo-americanos me sugeriram vários nomes, entre eles Amalgamemnon, de Christine Brooke-Rose (que até onde sei jamais teve algum livro publicado no Brasil, mas que teve um ensaio publicado dentro do livro Interpretação e Superinterpretação, editado por Umberto Eco) e A Visita Cruel do Tempo, livro que ganhou o Pulitzer de Ficção de 2011, de Jennifer Egan. Já estou com este último e encomendei o outro. Vamos em frente com a pesquisa – agora com autoras, que para mim são indispensáveis no processo.

sobre Lovecraft e os horrores de nossos tempos

Ontem se comemoraram oitenta e oito anos da morte de H. P. Lovecraft. Gosto de algumas histórias dele, não de todas – talvez não goste da maioria, aliás. Acho que já li tudo ou quase tudo dele. Traduzi, junto com o amigo Sylvio Gonçalves, alguns de seus primeiros contos, muito tempo atrás, para a finada editora carioca Francisco Alves. Também traduzi Nas Montanhas da Loucura para a Editora Underworld, casa que durou muito pouco tempo, infelizmente, porque publicou uma série de ótimos livros, do Young Adult ao Steampunk, e que fechou antes que o livro saísse. Meu romance O TORNEIO DE SOMBRAS pega emprestado o Chtulhu Mythos de passagem (mas ele vai figurar com mais detalhes numa aventura futura de January Purcell). Gosto das histórias envolvendo os Grandes Antigos e Chtulhu, repudio veementemente seu racismo e gosto ainda mais das histórias de autores mais recentes que recontam o mythos para os dias de hoje, subvertendo os conceitos dele e transformando as narrativas originais em antirracistas ou feministas, como respectivamente no livro Lovecraft Country, de Matt Ruff, ou a novela genial The Dream-Quest of Vellitt Boe, de Kij Johnson.

E fico pensando se o velho Howard Philip não terá (como muitos autores antes e depois dele) atirado onde viu e acertado no que não viu, com relação às divindades que infestam nosso mundo e nossas mentes. Chtulhu, segundo ele, era uma entidade tão assustadora que descrevê-la inteiramente seria impossível (embora ele tenha feito isso em The Call of Chtulhu, o primeiro conto a tratar da criatura, e que está completando cem anos em 2026, aliás). Vê-la era enlouquecer, e é efetivamente o que acontece com todos os que a contemplam.

Hoje, ao ler as notícias do Brasil e do mundo, com seus genocídios, manifestações defendendo anistia de golpistas e outras coisas, eventos cujos participantes buscam sempre razão para o que fazem nas religiões do planeta, me veio um pensamento: e se na verdade os humanos sempre veneraram os Grande Antigos achando que estavam fazendo o contrário? Alanis Morrisette cantava: “e se deus for um de nós?” para falar de como a empatia é tão necessária e tão pouco praticada. Mas talvez deus não seja nenhum de nós. Talvez deus e Chtulhu sejam a mesma coisa, a mesma entidade, e o que a espécie humana no fundo (e na superfície) gosta de adorar é o horror absoluto e irredimível. Talvez. Mas isso é para quem acredita nessas histórias, claro.

o semestre chegou chegando

Este ano começou bem – mas fiz uma parada estratégica na semana passada por conta do retorno dos alunos à universidade, e aproveitei para colocar em dia os projetos de pesquisa, mas também a tradução e os papers acadêmicos. Já tenho (várias) coisas agendadas para este semestre, entre as quais resenhas e artigos, sem falar da entrega do livro novo, que ainda vai levar um tempinho. Aguardem, então, que em breve tem mais uma parte da breve história da ficção científica que estou escrevendo por aqui.

uma breve história da ficção científica (parte 3)

A Revolução Industrial fomentou a criação de uma literatura popular no final do século 18, na forma dos folhetins. O século 19 nos trouxe variações disso na forma das dime novels americanas e dos penny dreadfuls britânicos (dos quais o cordel nordestino é um honrosíssimo descendente, aliás), e se encerrou com a criação por Frank Munsey em 1896, da primeira revista com papel feito da polpa da madeira, a Argosy. Esta, que seria de fato a primeira pulp magazine, deu origem a uma grande indústria, que durou até os anos 1950. Foi nessa indústria que surgiram praticamente todos os gêneros populares de ficção: a criminal, a de fantasia (aqui falo dos subgêneros sword-and-planet e weird fiction) e a ficção científica, claro.

Mais ou menos na mesma época da explosão das pulp magazines vão surgir duas mídias, ou melhor, duas novas utilizações de mídias que ainda eram razoavelmente recentes no começo do século 20: os quadrinhos e o cinema. As HQs verão surgir os heróis mascarados (como o Spirit, Batman e Superman, este não mascarado mas com uniforme de artista circense, como a maioria desses personagens); já o cinema verá o surgimento dos serials da Republic, isto é, aventuras serializadas semanais que causariam um impacto impressionante na cultura global. Os Perigos de Nyoka e Jim das Selvas, por exemplo, servirão como algumas das influências para a criação de Indiana Jones, de Lucas e Spielberg. Flash Gordon, embora criado primeiro para as tiras de jornal por Alex Raymond, rapidamente encontra seu espaço nos serials, e vai incentivar, entre outras coisas, a criação de Star Wars, por George Lucas (que na verdade queria ter feito uma adaptação de Flash Gordon mas não conseguiu os direitos do espólio de Raymond).

As primeiras histórias de sucesso nas pulp magazines se esforçam por seguir um modelo semelhante ao dos serials, não em termos de formato, mas de conteúdo. Como Isaac Asimov demonstra na série de antologias Before the Golden Age, diversos contos dessa época sintonizam esse zeitgeist pulp.

Um conto exemplar desse período é Tumithak of the Corridors, de Charles R. Tanner. Primeira de uma série de quatro novelas (duas das quais foram publicadas por Asimov ao longo dos três volumes dessa antologia), essa história é um misto de aventura na selva com a visão de mundo multicultural de Flash Gordon. Ambientada num futuro distante, onde, após uma bem-sucedida invasão alienígena, a humanidade se abrigou em gigantescas cavernas subterrâneas e regrediu a um estado tribal, o jovem Tumithak acaba liderando uma resistência entre todos os diversos povos (sub) humanos para derrotar os invasores.

A Golden Age, que viria a partir de 1940/41, seria o ponto de partida para os autores que viriam a se tornar mais conhecidos até hoje: Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Robert A. Heinlein, os chamados “Big Three”. Aqui no Brasil os Três Grandes seriam um pouco diferentes, sem Heinlein mas com Ray Bradbury em seu lugar. Seria o momento das Grandes Ideias, com um texto apenas um pouco mais refinado que a geração da década anterior, mas com ideias muito mais “científicas” e menos fantasiosas no mau sentido – o que, aliás, rende ótimas discussões no meio até hoje. Afinal, o quanto de ciência um livro de ficção científica precisa de fato ter para ser considerado FC de fato? E isso importa?

Para isso teríamos que voltar às definições de ficção cientifica. Mas queremos?

Em 1998, o crítico de arte Frederico Morais lançou um livro chamado Arte é o Que Eu e Você Chamamos Arte. O livro consistia de nada menos que 801 citações definindo o conceito de arte. Foi uma proposta ousada de Morais, porque diversas citações eram diametralmente opostas e contraditórias. Alguém deveria publicar um livro semelhante apenas com definições de ficção científica, porque certamente não faltam.

Existe espaço para praticamente tudo, até para definições que não usam esse termo, como é o caso de “ficção especulativa”, proposto por Robert A. Heinlein na década de 1950 (e também pela editora Judith Merril), e atualmente defendido por ninguém menos que Margaret Atwood, ao dizer algum tempo atrás que O Conto da Aia não seria ficção científica porque se refere a algo possível e viável, ao passo que a FC seria o campo do impossível.

Não é o caso, como Ursula K LeGuin rebateu na mesma época: a FC pode tratar do impossível mas também do plausível (o totalmente impossível é o território da fantasia). A chamada ficção especulativa, segundo a própria Merril, consiste de:

“(…) histórias cujo objetivo é explorar, descobrir, aprender, por meio de projeção, extrapolação, analogia, hipótese e experimentação em papel, algo sobre a natureza do universo, do homem, ou ‘realidade’… Eu uso o termo ‘ficção especulativa’ aqui especificamente para descrever o modo que faz uso do ‘método científico’ tradicional (observação, hipótese, experimento) para examinar alguma aproximação postulada da realidade, introduzindo um determinado conjunto de mudanças – imaginárias ou inventivo – no contexto comum de ‘fatos conhecidos’, criando um ambiente no qual as respostas e percepções dos personagens revelarão algo sobre as invenções, os personagens, ou ambos.”

Na SFF Encyclopedia, John Clute explica melhor essa divisão:

“A ênfase em todas estas definições anteriores recai sobre a presença da “ciência”, ou pelo menos do método científico, como uma parte necessária da ficção. A definição de Merril, no entanto, é claramente (ao passar da própria ciência para a ideia de extrapolação) é bastante mais ampla, uma vez que incluiria histórias que retratam a mudança social sem necessariamente fazer muito alarido sobre o desenvolvimento científico; e, de fato, essas histórias estavam se tornando muito populares nas revistas durante as décadas de 1950 e 1960, período durante o qual Merril escreveu e editou a maior parte.”

Isso parece ter sido o pontapé inicial para a divisão posterior entre FC hard e soft, ou seja, aquela ficção que dava conta das ciências ditas duras, como astrofísica, e das ciências sociais e humanas, como sociologia e psicologia. Não é exatamente isso, mas quase (e esse quase já provocou muitas brigas e cismas na história do gênero). E Atwood nem de longe é a única pessoa que ainda hoje, passado o primeiro quarto do século 21, ainda insiste em se afastar do termo ficção científica: recentemente, numa entrevista concedida a Emad Aysha, o escritor argelino Wasini al-Araj, autor do livro distópico 2084: The Story of the Last Arab, afirmou veementemente que seu livro (publicado em 2015 e que o catapultou ao estrelato nas letras da Argélia) não é de modo algum ficção científica, precisamente porque o que ele colocou naquelas páginas não só era plenamente possível como já está acontecendo.

Ainda hoje, muitos pesquisadores brasileiros têm preferido o termo ficção especulativa, por achá-lo menos vago que FC. Contudo, embora a ficção científica seja, como definiu Damien Broderick em seu livro Reading by Starlight, um megagênero, capaz de englobar vários outros, não pode realmente ser chamado de “vago” em comparação com “ficção especulativa”. Tanto para objetivos acadêmicos quanto para fins de fidelidade documental, o termo aqui usado continuará sendo ficção científica. E vamos em frente.

Bibliografia deste capítulo:

AYSHA, Emad. Predicting from the Fragments – On Wasini Al-Araj. Entrevista concedida ao site Liberum em 5 de fevereiro de 2025. Acesso: https://theliberum.com/predicting-from-the-fragments-on-wasini-al-araj/?

BRODERICK, Damien. Reading by Starlight: Postmodern Science Fiction. Londres: Routledge, 1995.

NEVINS, Jess. Encyclopedia of Pulp Heroes. Edição digital do autor, 2017. Acesso em: https://www.amazon.com.br/Encyclopedia-Pulp-Heroes-English-ebook/dp/B06Y2KVBXS/ref=sr_1_1?__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&crid=254EXMV3XF6ZK&dib=eyJ2IjoiMSJ9.jCtFVuNhn8121-lgbEppr9Xz-LfJi-I-CDs1I5EvKHA.RVHYFzxdqXRWrSvpgDfxXu9pXqavAT61qhwiFO0awVY&dib_tag=se&keywords=jess+nevins+pulp+heroes&qid=1739363788&sprefix=jess+nevins+pulp+heroe%2Caps%2C276&sr=8-1

CLUTE, John. SFF Encyclopedia. Verbete Definitions of SF. Acesso em: https://sf-encyclopedia.com/entry/definitions_of_sf

MORAIS, Frederico. Arte é Aquilo que Você e Eu Chamamos Arte. Rio de Janeiro: Record, 1998.