uma breve história da ficção científica (parte 3)

A Revolução Industrial fomentou a criação de uma literatura popular no final do século 18, na forma dos folhetins. O século 19 nos trouxe variações disso na forma das dime novels americanas e dos penny dreadfuls britânicos (dos quais o cordel nordestino é um honrosíssimo descendente, aliás), e se encerrou com a criação por Frank Munsey em 1896, da primeira revista com papel feito da polpa da madeira, a Argosy. Esta, que seria de fato a primeira pulp magazine, deu origem a uma grande indústria, que durou até os anos 1950. Foi nessa indústria que surgiram praticamente todos os gêneros populares de ficção: a criminal, a de fantasia (aqui falo dos subgêneros sword-and-planet e weird fiction) e a ficção científica, claro.

Mais ou menos na mesma época da explosão das pulp magazines vão surgir duas mídias, ou melhor, duas novas utilizações de mídias que ainda eram razoavelmente recentes no começo do século 20: os quadrinhos e o cinema. As HQs verão surgir os heróis mascarados (como o Spirit, Batman e Superman, este não mascarado mas com uniforme de artista circense, como a maioria desses personagens); já o cinema verá o surgimento dos serials da Republic, isto é, aventuras serializadas semanais que causariam um impacto impressionante na cultura global. Os Perigos de Nyoka e Jim das Selvas, por exemplo, servirão como algumas das influências para a criação de Indiana Jones, de Lucas e Spielberg. Flash Gordon, embora criado primeiro para as tiras de jornal por Alex Raymond, rapidamente encontra seu espaço nos serials, e vai incentivar, entre outras coisas, a criação de Star Wars, por George Lucas (que na verdade queria ter feito uma adaptação de Flash Gordon mas não conseguiu os direitos do espólio de Raymond).

As primeiras histórias de sucesso nas pulp magazines se esforçam por seguir um modelo semelhante ao dos serials, não em termos de formato, mas de conteúdo. Como Isaac Asimov demonstra na série de antologias Before the Golden Age, diversos contos dessa época sintonizam esse zeitgeist pulp.

Um conto exemplar desse período é Tumithak of the Corridors, de Charles R. Tanner. Primeira de uma série de quatro novelas (duas das quais foram publicadas por Asimov ao longo dos três volumes dessa antologia), essa história é um misto de aventura na selva com a visão de mundo multicultural de Flash Gordon. Ambientada num futuro distante, onde, após uma bem-sucedida invasão alienígena, a humanidade se abrigou em gigantescas cavernas subterrâneas e regrediu a um estado tribal, o jovem Tumithak acaba liderando uma resistência entre todos os diversos povos (sub) humanos para derrotar os invasores.

A Golden Age, que viria a partir de 1940/41, seria o ponto de partida para os autores que viriam a se tornar mais conhecidos até hoje: Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Robert A. Heinlein, os chamados “Big Three”. Aqui no Brasil os Três Grandes seriam um pouco diferentes, sem Heinlein mas com Ray Bradbury em seu lugar. Seria o momento das Grandes Ideias, com um texto apenas um pouco mais refinado que a geração da década anterior, mas com ideias muito mais “científicas” e menos fantasiosas no mau sentido – o que, aliás, rende ótimas discussões no meio até hoje. Afinal, o quanto de ciência um livro de ficção científica precisa de fato ter para ser considerado FC de fato? E isso importa?

Para isso teríamos que voltar às definições de ficção cientifica. Mas queremos?

Em 1998, o crítico de arte Frederico Morais lançou um livro chamado Arte é o Que Eu e Você Chamamos Arte. O livro consistia de nada menos que 801 citações definindo o conceito de arte. Foi uma proposta ousada de Morais, porque diversas citações eram diametralmente opostas e contraditórias. Alguém deveria publicar um livro semelhante apenas com definições de ficção científica, porque certamente não faltam.

Existe espaço para praticamente tudo, até para definições que não usam esse termo, como é o caso de “ficção especulativa”, proposto por Robert A. Heinlein na década de 1950 (e também pela editora Judith Merril), e atualmente defendido por ninguém menos que Margaret Atwood, ao dizer algum tempo atrás que O Conto da Aia não seria ficção científica porque se refere a algo possível e viável, ao passo que a FC seria o campo do impossível.

Não é o caso, como Ursula K LeGuin rebateu na mesma época: a FC pode tratar do impossível mas também do plausível (o totalmente impossível é o território da fantasia). A chamada ficção especulativa, segundo a própria Merril, consiste de:

“(…) histórias cujo objetivo é explorar, descobrir, aprender, por meio de projeção, extrapolação, analogia, hipótese e experimentação em papel, algo sobre a natureza do universo, do homem, ou ‘realidade’… Eu uso o termo ‘ficção especulativa’ aqui especificamente para descrever o modo que faz uso do ‘método científico’ tradicional (observação, hipótese, experimento) para examinar alguma aproximação postulada da realidade, introduzindo um determinado conjunto de mudanças – imaginárias ou inventivo – no contexto comum de ‘fatos conhecidos’, criando um ambiente no qual as respostas e percepções dos personagens revelarão algo sobre as invenções, os personagens, ou ambos.”

Na SFF Encyclopedia, John Clute explica melhor essa divisão:

“A ênfase em todas estas definições anteriores recai sobre a presença da “ciência”, ou pelo menos do método científico, como uma parte necessária da ficção. A definição de Merril, no entanto, é claramente (ao passar da própria ciência para a ideia de extrapolação) é bastante mais ampla, uma vez que incluiria histórias que retratam a mudança social sem necessariamente fazer muito alarido sobre o desenvolvimento científico; e, de fato, essas histórias estavam se tornando muito populares nas revistas durante as décadas de 1950 e 1960, período durante o qual Merril escreveu e editou a maior parte.”

Isso parece ter sido o pontapé inicial para a divisão posterior entre FC hard e soft, ou seja, aquela ficção que dava conta das ciências ditas duras, como astrofísica, e das ciências sociais e humanas, como sociologia e psicologia. Não é exatamente isso, mas quase (e esse quase já provocou muitas brigas e cismas na história do gênero). E Atwood nem de longe é a única pessoa que ainda hoje, passado o primeiro quarto do século 21, ainda insiste em se afastar do termo ficção científica: recentemente, numa entrevista concedida a Emad Aysha, o escritor argelino Wasini al-Araj, autor do livro distópico 2084: The Story of the Last Arab, afirmou veementemente que seu livro (publicado em 2015 e que o catapultou ao estrelato nas letras da Argélia) não é de modo algum ficção científica, precisamente porque o que ele colocou naquelas páginas não só era plenamente possível como já está acontecendo.

Ainda hoje, muitos pesquisadores brasileiros têm preferido o termo ficção especulativa, por achá-lo menos vago que FC. Contudo, embora a ficção científica seja, como definiu Damien Broderick em seu livro Reading by Starlight, um megagênero, capaz de englobar vários outros, não pode realmente ser chamado de “vago” em comparação com “ficção especulativa”. Tanto para objetivos acadêmicos quanto para fins de fidelidade documental, o termo aqui usado continuará sendo ficção científica. E vamos em frente.

Bibliografia deste capítulo:

AYSHA, Emad. Predicting from the Fragments – On Wasini Al-Araj. Entrevista concedida ao site Liberum em 5 de fevereiro de 2025. Acesso: https://theliberum.com/predicting-from-the-fragments-on-wasini-al-araj/?

BRODERICK, Damien. Reading by Starlight: Postmodern Science Fiction. Londres: Routledge, 1995.

NEVINS, Jess. Encyclopedia of Pulp Heroes. Edição digital do autor, 2017. Acesso em: https://www.amazon.com.br/Encyclopedia-Pulp-Heroes-English-ebook/dp/B06Y2KVBXS/ref=sr_1_1?__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&crid=254EXMV3XF6ZK&dib=eyJ2IjoiMSJ9.jCtFVuNhn8121-lgbEppr9Xz-LfJi-I-CDs1I5EvKHA.RVHYFzxdqXRWrSvpgDfxXu9pXqavAT61qhwiFO0awVY&dib_tag=se&keywords=jess+nevins+pulp+heroes&qid=1739363788&sprefix=jess+nevins+pulp+heroe%2Caps%2C276&sr=8-1

CLUTE, John. SFF Encyclopedia. Verbete Definitions of SF. Acesso em: https://sf-encyclopedia.com/entry/definitions_of_sf

MORAIS, Frederico. Arte é Aquilo que Você e Eu Chamamos Arte. Rio de Janeiro: Record, 1998.

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