Já faz um tempo que eu venho pensando em escrever um texto para comemorar os cem anos da ficção científica, que já estão chegando. Não o sci-fi (que, a rigor, é um termo para o audiovisual), nem o fantástico ou gêneros semelhantes, mas a FC mesmo, a Ficção Científica enquanto-a-nível-de rótulo mercadológico, criado por Hugo Gernsback há quase cem anos. Em 1926, esse engenheiro de Luxemburgo radicado nos EUA criou a primeira revista pulp dedicada a esse gênero que ele mesmo inventou. Embora revistas de aventuras fantásticas já existissem (a Weird Tales, que viria a publicar H. P. Lovecraft, Clark Ashton Smith e Robert E. Howard, havia sido criada quatro anos antes, em 1922), ainda não existia nada que desse conta do fantástico tecnológico, por assim dizer. Talvez por isso mesmo Gernsback, ao publicar a edição de estreia da revista Amazing Stories (Histórias Incríveis, numa tradução literal) em abril de 1926, escreveu o seguinte no editorial:
“Por ‘scientifiction‘ quero dizer o tipo de história de Júlio Verne, HG Wells e Edgar Allan Poe – um romance encantador misturado com fatos científicos e visão profética… Esses contos incríveis não apenas são uma leitura tremendamente interessante – eles são sempre instrutivos. Eles fornecem conhecimento… de uma forma muito palatável… Novas aventuras retratadas para nós na ciência de hoje não são de todo impossíveis de serem realizadas amanhã… Muitas grandes histórias científicas destinadas a ser de interesse histórico ainda estão para ser escritas … A posteridade apontará para eles como tendo aberto um novo caminho, não apenas na literatura e na ficção, mas também no progresso.”
A história por trás da palavra scientifiction vai ficar para o próximo post. Por ora, basta dizer que, como a própria citação acima entrega, Gernsback deixa muito claro as referências que utiliza na defesa desse novo gênero: os romances científicos de Wells, as viagens maravilhosas de Verne e as narrativas extraordinárias de Poe. Das coisas nascem coisas, como dizia Bruno Murari; ou seja, tudo o que existe veio de algo que o precedeu. Parece óbvio, mas em tempos de excesso de informação e escassez de curadoria, não custa lembrar. O pesquisador britânico John Clute, um dos criadores do maior repositório de termos do gênero, a The Science Fiction Encyclopedia, costuma falar em algo como a Grande Conversação. Esse termo se refere à transmissão no tempo de conceitos que se atualizam, mas que sempre permanecem inteligíveis para quem os lê. Um exemplo seria o robô, conhecido no século 19 com o nome de autômato, e que depois ganharia o nome atual devido à peça de teatro R.U.R., de Karel Capek, e depois também seria chamado, dependendo dos autores, de androide (ou ginoide) ou replicante, em Blade Runner, ou moravecs em Ilium, de Dan Simmons, ou o Murderbot dos livros de Martha Wells, mas todos significando a mesma coisa: um ser artificial semelhante ao humano. E basta o acesso a um desses termos para que a maioria dos leitores do gênero (e mesmo muitos leitores não acostumados aos protocolos narrativos da ficção cientifica) saibam do que está se falando.
Da mesma forma que com os termos, os gêneros também passariam pelo mesmo processo, mas de um modo mais peculiar, associados em grande parte a um autor específico. Os chamados romances científicos são o território por excelência de H. G. Wells a partir de 1895, com sua novela A Máquina do Tempo, embora já tivesse sido usado em 1879 para definir o conjunto da obra de Júlio Verne na American Cyclopædia. A weird fiction, que engloba horror, fantasia e ocasionalmente elementos futuristas ou alienígenas, já existia com esse nome desde o lançamento da revista Weird Tales, porque seu primeiro editor, Farnsworth Wright, conferia esse rótulo às histórias ali publicadas. O chamado romance planetário costuma ter sua origem associada ao livro Uma Princesa de Marte, de Edgar Rice Burroughs, publicado em 1817, mas duas inspirações bastante explícitas desse livro foram publicadas respectivamente em 1880 (Across the Zodiac, de Percy Greg) e 1905 (Lieu. Gullivar Jones: His Vacation, de Edwin Lester Arnold), ambas histórias de aventura que apresentam militares americanos sendo transportados de modos incomuns para Marte. Portanto, como vemos, é difícil encontrar um ponto de origem exato para esse tipo de literatura.
Por isso, é importante deixar claro uma coisa: tudo é narrativa. Cada vez que alguém escreve um livro de história, o faz com o conhecimento da época e com seus próprios vieses. Na série de textos que estou propondo aqui, a ideia é concentrar o foco no período entre 1926 e agora – entendendo o “agora” como o momento do último post da série, que poderá ser escrito no fim do ano ou no começo de 2026. Mas sei que a ficção científica (e aí sim, incluindo o sci-fi, termo criado por Forrest J. Ackerman para o audiovisual, a fim de diferenciá-lo da SF, Science Fiction, que seria exclusivamente literária) começa muito antes, disso se é que é possível fincar uma bandeira no tempo e dizer com certeza absoluta quando se dá o nascimento desse gênero tão vasto. No artigo On the Origins of Genre, o pesquisador britânico Paul Kincaid afirma justamente o contrário. Ele já começa chutando o pau da barraca acadêmica, dizendo:
“Não existe um ponto de partida para a ficção científica. Não existe um romance que marque o início do gênero. Todos nós tentamos identificar o texto primordial, a fonte de onde Heinlein, Ellison, Gibson, Ballard, Priest, Le Guin e uma série de outros fluem. Brian Aldiss é famoso por ter dado essa distinção a Frankenstein, de Mary Shelley, e sua sugestão foi aceita por vários comentaristas posteriores. Outros fortes candidatos incluem H.G. Wells, ou Edgar Allan Poe, ou Júlio Verne. Gary Westfahl nomeou Hugo Gernsback como o verdadeiro pai da ficção científica. Outros ainda (inclusive eu) voltaram à Utopia de Thomas More.
Estamos todos errados.
Temos que estar errados, porque não existe nenhum texto ancestral que possa conter, mesmo em forma nascente, tudo o que identificamos como ficção científica.”
Respeito muito Kincaid e tendo a concordar com ele (e mais para diante vou referenciá-lo em outros textos), mas o objetivo aqui é outro. Me parece evidente que não se pode criar uma cadeia de elementos tão direta e inequívoca vinculando textos como Frankenstein, A Máquina do Tempo e Duna, se formos levar em conta os enredos e os tipos específicos de invenções ou situações ficcionais desses livros. Contudo, como eu disse bem no começo deste post, se aplicarmos o critério do fantástico tecnológico, podemos sim traçar pontos de contato entre estas e muitas outras histórias. Mas fazemos isso porque é isso que os humanos sabem fazer: criar vínculos entre elementos e uma narrativa que a justifique. Às narrativas insustentáveis damos o nome de teorias da conspiração; as narrativas coerentes, chamamos de História.
Este post é o começo de uma narrativa que se pretende bastante coerente sobre a ficção científica como gênero mercadológico, com ênfase na literatura mas também com alguns mergulhos no cinema e em séries de TV e streaming. Aqui a ideia é apresentar aos leitores deste blog um contexto mais aprofundado sobre o assunto do que costuma se encontrar em redes sociais e newsletters atualmente, tentando (como eu já vinha fazendo no Terra Incognita, meu canal de YouTube, e no podcast Viva SciFi, de Tiago Meira, onde sou co-host) sair do convencional e indicar textos (de ficção e não-ficção) pouco conhecidos no Brasil.
Bibliografia deste capítulo:
KINCAID, Paul. On the Origins of Genre. In: Extrapolation 44(4): p. 409-419. Liverpool: Liverpool University Press, Janeiro de 2003
WHYTOFF, Grant (ed). The Perversity of Things: Hugo Gernback on Media, Tinkering, and Scientifiction. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2016.

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