Neuromancer é um romance histórico

Hoje entrou no ar o episódio 98 do podcast Viva Sci-Fi, do Tiago Meira, do qual tenho o prazer de participar como co-host desde a edição 45, há pouco mais de dois anos. O tema foi a comemoração dos quarenta anos de publicação de Neuromancer, de William Gibson. Acho que foi o episódio em que eu mais falei (desculpe, Tiago): afinal, não sou apenas um fã, mas também traduzi esse livro, e ele está praticamente no meu DNA. Foi graças a ele que minha escrita tomou um outro rumo, em 1989, e eu acabaria sendo conhecido no meio literário como um escritor cyberpunk (e depois steampunk).

Mas uma coisa que eu procurei deixar bem clara no episódio é que está tudo bem se você não gosta desse livro. O próprio Gibson já declarou em várias entrevistas que ele acha o livro fraco hoje em dia, e de certa forma ele tem razão. Se comparado com seus livros mais recentes, especialmente Reconhecimento de Padrões e Periféricos, isso faz todo sentido.

Eu defendo que Neuromancer é um bom livro no sentido de que ele foi um marco importante, um divisor de águas na literatura do gênero, e não faz a menor diferença se os termos técnicos usados por Gibson estão errados ou datados. A título de comparação, dá pra dizer que Moby-Dick é um livro ruim porque a navegação marítima de hoje não é a mesma de 150 anos atrás? Pois é.

A questão do estilo mereceria ser discutida à parte. Eu abordo isso parcialmente no meu livro A Construção do Imaginário Cyber (fruto do meu mestrado e atualmente esgotado), mas também não importa: gosto não se discute. Se você acha que Neuromancer é mal escrito, você está errado, mas tudo bem. O livro simplesmente não é fácil de ler hoje em dia.

Mas numa coisa os críticos recentes têm acertado: algumas coisas não fazem mesmo sentido no romance, que é basicamente uma heist novel ambientada no futuro próximo. Heist movie é como os americanos chamam um filme de roubo, mas não um roubo qualquer; heist é aquele roubo bem arquitetado, geralmente com uma gangue de especialistas, para arrombar um cofre-forte de segurança máxima em algum lugar virtualmente inacessível.

E é exatamente isso o que Neuromancer é. Case, Molly, Armitage e o Finlandês se juntam para roubar uma inteligência artificial da empresa que a criou. No caso, a Tessier-Ashpool, que mantém a IA presa dentro de um mainframe numa estação orbital.

Faz sentido? Não. Afinal, todo mundo sabe que um programa de software (e grosso modo, é isso o que uma IA é) não está preso a um computador físico, pelo menos não de modo definitivo. Graças à web, o sistema de wifi e à computação em nuvem, um hacker hoje em dia faria uma cópia do programa e pronto, não seria sequer preciso roubar nada físico ou desconectar algo do sistema. Mas William Gibson não tinha como saber disso porque não só o ciberespaço como ele o descreve jamais existiu (e dificilmente existirá), mas a World Wide Web, o sistema de wifi e a cloud computing simplesmente não existiam em 1984.

Então só agora, depois do podcast gravado (desculpe mais uma vez, Tiago) me dou conta de que não lancei o argumento mais importante para se defender Neuromancer: ele virou um romance histórico. Evidentemente que não é um romance histórico tradicional, como Wolf Hall ou Os Pilares da Terra, mas um livro que relata coisas com o ponto de vista de um usuário da tecnologia da época em que foi escrito. E só por isso já valeria, já vale, a leitura. Porque é preciso entender o contexto da obra.

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